09 junho 2017

jaime garcia-maíquez / a lua




É outra vez a lua, a de sempre
a de toda a vida:
a lua dos séculos vindouros,
a lua medieval, a que brindava
com a sombra de Li-po,
a que pisou o homem,
a de prata, a vermelha, a amarela,
a deusa dos ritos ancestrais,
o templo do silêncio,
                                      o espelho da alma.
Também a lua desta mesma noite
diária e cambiante,
ou aquela aterradora superfície
da primeira sombra, quando o sol
deu a luz à lua.

É outra vez a lua
                              e estes versos
são outra vez o mesmo, o obstinado,
frenético e absurdo malefício
de lhe escrever um poema.
– que para ser sincero também não satisfez
o eterno objectivo de invocar essa luz –

No entanto, em muitas tentativas literárias
Que trago às costas, consegui
da lua um triunfo;
                                 fazer dela,
à força de fracassos,
o monumento que jamais um homem
ousara erguer à sua derrota.




jaime garcia-maíquez
tradução de josé colaço barreiros
canal nr. 2
revista de literatura
palha de abrantes
1998



08 junho 2017

antónio josé forte / mar de ninguém



No mar de ninguém
o navio fantasma e a sua hélice de sangue
à distância de um tiro
onde é a entrada abrupta dando para o torso adolescente
o de sempre quando é preciso procurar uma passagem
entre fios esticados de garganta a garganta
e um tambor estilhaçado à altura do peito





antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987





07 junho 2017

ángel crespo / meditação do mortal



Morrer será como fechar o livro,
mas não será como apagar a luz
ou beber o último
gole.
         Será,
para quem vai juntando
tanto mundo disperso,
não descansar, mas sim
deixar que outros reúnam
o que juntou com o que não juntei.



ángel crespo
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



06 junho 2017

paul claudel / o mundo é tão belo



9

Ah
o mundo é tão belo
que é preciso
colocar aqui
alguém capaz
de não se mover
de manhã
até à noite




paul claudel
cent frases pour éventails (1927)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003





05 junho 2017

e e cummings / há pouquíssimo tempo



50.
há pouquíssimo tempo,
isto é, uma vida,
ao caminhar no escuro
encontrei-me com cristo

jesus) o meu coração
saltou-me do peito
e ficou quieto
enquanto ele passava (tão

perto como eu estou de ti
sim, mais perto
feito de nada
excepto de solidão



e e cummings
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




04 junho 2017

alberto caeiro / pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares


XXXIII

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos





03 junho 2017

herberto helder / fonte



III
Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta
agora entre águas e silêncios.
Nada te acorda – nem as folhas dos ulmos,
nem os rios, nem os girassóis,
nem a paisagem arrebatada e casta.
– Espero do tempo novo todos os milagres,
menos tu.

Somente  corres no meu sangue memoriado
e sobes, carne das palavras outra vez,
todas as vezes, imperecíveis e virgens.
– Do tempo jovem espero o vinho e o pólen,
outras mãos mais puras
e mais sagazes,
e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtude
inteligente.

– Espero cobrir-te novamente de júbilo, ó corola
imarcescível do canto.
Mas tu estarás mais branca com a boca selada
pelas lisas pedras.
E sei que terei o amor e o pão e a água
e o sangue e as palavras e os frutos.
Mas tu, ó rosa fria,
ó odre das vinhas antigas e limpas?

Do tempo novo espero
o sinal ardente e incorrupto,
mas levo os dedos ao teu nome prolongado,
ó cerrada mãe,
levo os dedos vazios –
e só a tua morte cresce por eles totalmente.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





02 junho 2017

antónio franco alexandre / duende




3.

Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho o rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fingido.



antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002





01 junho 2017

josé tolentino mendonça / o grito




Dos dias, sim, mas das noites
quem pergunta pelo nome
essas flores selvagens
(seriam flores?)
trazidas  pelo teu assobio

A beleza nunca é clara
o modo em que se aproxima
Somos com certas coisas
um mundo ainda terrível
incapaz de explicações
sem nenhuma das certezas
mesmo aquelas, ínfimas, que sustentam
uma palavra, um olhar ou um grito

Só resta a maneira
mais pura:
de igual para igual
tão desconhecidos


josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001






31 maio 2017

konstandinos kavafis / muros




Sem circunspecção, sem mágoa, sem pejo
grandes e altos em redor de mim construíram muros.

E fico e desespero agora no que vejo.
Não penso noutra coisa: na minha mente esta sina rasga furos;

porque tantas coisas havia a fazer lá fora por ti.
Quando construíram os muros como é que não reparei, ah.

Mas nunca o estrondo de pedreiros ou som ouvi.
Imperceptivelmente cerraram-me do mundo que está lá.




konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994





30 maio 2017

edna st. vincent millay / para um jovem poeta



O tempo não consegue separar a asa de uma ave da ave.
Ave e asa, em completa junção,
Descem, e uma só pena são.

Nada que no ar se sustente,
Nem a cotovia, nem tu igualmente.
Morre como morre a outra gente.



edna st. vincent millay
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




29 maio 2017

jorge de sousa braga / poema de amor




Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
                    te coubesse no dedo.





jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991





28 maio 2017

bernardo soares / a história nega as coisas certas




A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.
Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!

Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção, Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982