Mostrar mensagens com a etiqueta rui knopfli. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta rui knopfli. Mostrar todas as mensagens

11 dezembro 2023

rui knopfli / fim de tarde no café

 




 
Na tarde cor de azebre
falávamos de coisas amargas.
Ali, na mesa triste do café
com moscas adejando
sobre restos de açúcar
e um copo de água
morna de esquecida,
falávamos da amargura das coisas,
entre rostos graníticos e enxovalhados,
entre estranhos e estranhos
de estranhos e os que,
nada tendo de estranhos,
cuidam de cuidar
o que se passa entre estranhos.
Na tarde comprida e silenciosa
tecíamos gestos inúteis
e palavras entre dentes,
mergulhados na paisagem geométrica
do café. Do café tão cheio de gente
e fumo e moscas e caras tristes
e afinal tão profundamente,
tão desesperadamente vazio.
 
 
 
rui knopfli
motivações
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



04 maio 2022

rui knopfli / tédio

  
 
Estamos chateados e não temos ilusões.
As nossas árvores não frutificam fantasias,
dão flores de sangue
e frutos abortivos de dor.
Atiramos pedras pr’além do muro
e escutamos o som opaco da queda.
O muro é de silêncio
mas as pedras têm arestas e levantam nuvens de caliça
que pairam no ar.
Subimos uma avenida de acácias,
passeios brancos e asfalto grosso.
Não nos interessam as acácias, os passeios brancos
e o asfalto grosso.
Vai um homem connosco.
Enquanto diz das futilidades
de Miss Dawson
outros olham-nos como se fôssemos a parte negativa
deste mundo restrito.
Em distante estrada plena de sol
dum qualquer país distante
Henri, o marinheiro, caminha com o céu sobre a cabeça.
Não atiramos pedras em vão.
Continuamos a subir de mãos nos bolsos
e, porque agora, muitos nos olham
inviamente,
no cimo, cuspiremos o chewing-gum
de encontro à parede.
 
 
 
rui knopfli
- gerais
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982




 

22 abril 2019

rui knopfli / baldio



O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras ao gala-galas
e salta sobre velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra dos meus olhos.


rui knopfli
mangas verdes com sal (1969)
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982






10 maio 2018

rui knopfli / auto-retrato




De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes,
do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracial, lesto na mirada do seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.



rui knopfli
o dente do siso
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional-casa da moeda
1982







16 fevereiro 2018

rui knopfli / o fio da vida




Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não crêem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.



rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982







16 outubro 2017

rui knopfli / progresso




Estamos nus como os gregos na Acrópole
e o sol que nos mira também os fitou.
Mas fazemos amor de relógio no pulso.



rui knopfli
o passo trocado
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982






24 agosto 2017

rui knopfli / despedida



Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste Outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo
de silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio,
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.


rui knopfli
1-líricas
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional-casa da moeda
1982





28 junho 2017

rui knopfli / telegrama



Ao longo destes anos todos
nada temos dito – meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
       Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.



rui knopfli
o dente do siso
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional - casa da moeda
1982








10 maio 2017

rui knopfli / «cântico negro»




Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes  de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T´ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
– esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
Só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground.



rui knopfli
o passo trocado
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982



03 abril 2017

rui knopfli / a casa dos mortos



Sub-reptícia, uma certa gravidade
se apodera de nós: um travo
residual morde as comissuras
do sorriso. No olhar com que olhamos
se demora outro olhar. No aceno
da mão pesa uma lentura inusitada.
Percebemo-lo na aresta de indefinido
mal-estar, na amargura que dura
enquanto dura o tempo de uma
lembrança furtiva. No ar, talvez
que respiramos de tudo o que foi
e fomos e reverbera em nós
ardências e crepitações. Como um soluço
represo e interminável, eles persistem
desgarradamente presos à curvatura
dolorida dos nossos gestos. Eles
doem em nós uma presença muda
e grave. E emprestam a tudo
o que fazemos uma harmonia melancólica.
Com a maré baixa do seu terno desespero,
moram em nós que somos os vivos.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982





25 dezembro 2016

rui knopfli / a pedra no caminho



Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente. Ao meio-dia
na avenida tu és um homem
segurando uma pedra. Segurando-a
com amor e raiva.


rui knopfly
reino submarino
1962



19 janeiro 2016

rui knopfli / o preto no branco



De granada deflagrada no meio
de nós, do fosso aberto, da vala
intransponível, não nos cabe
a culpa, embora a tua mão,
lhe tenha retirado a espoleta.
De um lado o teu dedo indicador,
de outro a minha assumida neutralidade.
Entre os dois, ocupando o espaço
que vai do teu dedo acusador
à minha mudez feita de medo e simpatia,
tudo quanto não quisemos, nem urdimos,
tudo quanto a medonha zombaria
de ódios estranhos escreve a sangue
e, irredutivelmente, nos separa e distancia.
Tudo quanto há-de gravar o meu nome
numa das balas da tua cartucheira.
Nessa bala hipotética, nessa bala possível
que se vier, quando vier (ela há-de vir)

melhor dirá o que aqui fica por dizer.


rui knopfil
mangas verde com sal
1969



12 dezembro 2015

rui knopfli / feliz



Fita de areia sobre o acerado
mercúrio do rio. O sorriso
difuso suspenso da tarde.
Alcançando-se, a epiderme
dos dedos longos.

Eras feliz. Dizias,
o sol morno sobre os cabelos.
Feliz como nos retratos,
como na tarde longínqua
do sorriso. Como o rio
tranquilo.

Existiu e não é.
Os retratos amarelecem no fundo da gaveta.



rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982




17 junho 2015

rui knopfli / hidrografia



São belos os nomes dos rios
na velha Europa.
Sena, Danúbio, Reno são
palavras cheias de suaves inflexões,
lembrando em tardes de oiro fino,
frutos e folhas caindo, a tristeza
outoniça dos chorões.
O Guadalquivir carrega em si espadas
de rendilhada prata,
como o Genil ao sol poente,
o sangue de Federico.
E quantas histórias de terror
contam as escuras águas do Reno?
Quantas sagas de epopeia
não arrasta consigo a corrente
do Dniepre?
Quantos sonhos destroçados
navegam com detritos
à superfície do Sena?
Belos como os rios são
os nomes dos rios na velha Europa.
Desvendada, sua beleza flui
sem mistérios.
Todo o mistério reside nos rios
da minha terra.
Toda a beleza secreta e virgem que resta
está nos rios da minha terra.
Toda a poesia oculta é a dos rios
da minha terra.
Os que cansados sabem todas
as histórias do Sena
e do Guadalquivir, do Reno
e do Volga
ignoram a poesia corográfica
dos rios da minha terra.
Vinde acordar
as grossas veias da água grande!
Vinde aprender
os nomes de Uanétze, Mazimechopes,
Massintonto e Sábié.
Vinde escutar a música latejante
das ignoradas veias que mergulham
no vasto, coleante corpo do Incomáti,
O nome melodioso dos rios
da minha terra,
a estranha beleza das suas histórias
e das suas gentes altivas sofrendo
e lutando nas margens do pão e da fome.
Vinde ouvir,
entender o ritmo gigante do Zamveze,
colosso sonolento da planura,
traiçoeiro no bote como o jacaré,
acordando da profundeza epidérmica do sono
para galgar os matos
como cem mil búfalos estrondeantes
de verde espuma demoníaca
espalhando o imenso rosto líquido da morte.
Vede as margens barrentas, carnudas
do Púngoé, a tristeza doce do Umbelúzi,
à hora do anoitecer. Ouvi então o Lúrio,
cujo nome evoca o lírio europeu
e que é lírico em seu manso murmúrio.
Ou o Rovuma acordando exóticas
lembranças de velhos, coloniais
navios de roda revolvendo águas pardacentas,
rolando memórias islâmicas de tráfico e escravatura.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982




17 agosto 2014

rui knopfli / sem nada de meu


Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982



13 dezembro 2013

rui knopfli / mania do suicídio



Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982



28 junho 2013

rui knopfli / verso e anverso



Diria palavras altas como amor,
palavras lentas como ternura,
ou duráveis como amizade.

Desceu um véu de luto sobre o amarelo
esmaecido da savana, lá onde dormem
os corpos mutilados e onde cresta,
rente à terra, o sangue derramado.

Baixou sobre a serenidade das coisas
um sono obscuro e terrível.
Poluiu o teu sorriso, o meu desejo;
intercala os gestos e as vozes ciciadas.

Cerramos os olhos para a penumbra
donde brotam, nítidas, as imagens:
Há uma criança no fogo,
o pavor de um soluço estrangulado,
fulgurantes, rápidas chamas.

Direi palavras insuportáveis como morte.



rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982




07 abril 2012

rui knopfli / amputação





Algo, em mim, está morto.
O lado direito inerte, ausente,
de mim está alheio.
Do lado esquerdo
o fito,
como se a um outro
olhasse.
Metade de mim persiste,
vive,
e contempla algo, ardendo,
estiolando,
que em mim está morto.
Um perfil que apodrece
e eu vivendo
e vendo ausentar-se de mim
algo que em mim está morto
definitivamente.



rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982