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01 fevereiro 2024

miguel torga / sinal

 
 
 
Basta olhar essa luz:
Tão viva, tão possível, tão presente,
Que a distância a que brilha se reduz
Ao tempo que o desejo nos consente.
 
Pede-a a força da terra, a lei da vida;
Chamam por ela os olhos renascidos;
Halo de uma conquista apetecida,
É uma pura fogueira dos sentidos.
 
Vem como o vento o seu calor aberto;
Vem como um facho a sua claridade;
E o que fica de lado é um céu deserto
De cor, de sugestão e de verdade.
 
 
 
miguel torga
libertação
1944
poesia completa vol. i
dom quixote
2007



22 dezembro 2022

miguel torga / unha negra



 
Hoje,
Nem a vida me foge,
Nem eu fujo;
É não sei quê no sol
Que está sujo,
 
 
 
miguel torga
diário I
1941
poesia completa vol. i
dom quixote
2007





 

14 maio 2022

miguel torga / desfecho

 
 
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te…
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
 
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente…
 
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tua não usas,
Sempre silencioso na agressão.
 
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia…
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
 
 
 
miguel torga
câmara ardente
1962




24 outubro 2021

miguel torga / plateia

 
 
Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
 
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
 
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
 

 
miguel torga
câmara ardente
1962





25 agosto 2019

miguel torga / pedagogia



Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende…
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de ser!

Coimbra, 16 de Março de 1960



miguel torga
diário ix
1964







12 maio 2019

miguel torga / negrume



De tanto olhar o sol, queimei os olhos.
De tanto amar a vida, enlouqueci.
Agora sou no mundo esta negrura,
À procura
Da luz e do juízo que perdi.

Cego, tacteio em vão a claridade;
Louco, cuspo no rosto da razão;
E deambulo assim
Dentro de mim,
Negação a negar a negação.


miguel torga
câmara ardente
1962







02 junho 2018

miguel torga / transe



Coimbra, 30 de Março de 1955


Nem tudo é lei da vida ou lei da morte.
Há limbos onde o homem desconhece
Esse dilema hostil.
É quando ama, ou sonha, ou faz poemas,
E a própria natureza o não domina.
Então, livre e perfeito,
Paira no tempo como o pó suspenso.
Nem do céu, nem da terra, nem sujeito
Ao pesadelo de nenhum consenso.



miguel torga
diário VII
1956






23 dezembro 2017

miguel torga / mácula


Coimbra, 3 de Novembro de 1968


Manhã de luz doente
Como as folhas que a febre amarelece.
O céu, baixo, parece
Desprender-se do aro que o sustém.
Tristes, as coisas murcham nos sentidos
Deprimidos,
Outoniços, também…


miguel torga
diário X
1968







23 outubro 2017

miguel torga / miniatura



Coimbra, 11 de Abril de 1957

Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança, também…
Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.

É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que ou voltasse
À pureza da semente.


miguel torga
diário VIII
1959




25 março 2017

miguel torga / perplexidade



Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo…
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões…
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.

E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão.


miguel torga
câmara ardente
1962





28 janeiro 2017

miguel torga / cântico de amor



Ama quem amas, como o vento
Ama as folhas do olmo
(Amor que lhes transmite movimento
E alegria).
Asa que possa andar no firmamento,
Só caminha no chão por cobardia.



miguel torga
nihil sibi
1948



20 setembro 2016

miguel torga / talvez eu me engane


Coimbra, 12 de Julho de 1957 – Talvez eu me engane a meu respeito e a respeito dos mais. Mas em matéria de revelação da intimidade de cada um, ainda vou pelo diálogo. As correspondências, pelo simples facto de uma certa opção formal a que a escrita obriga sempre, são fintas petrificadas. Os diários e as confissões, pouco mais ou menos o mesmo. Ora, numa boa conversa a dois, o prestigitador tem ao pé uma atenção a observá-lo. E como a gente não fala só com palavras – porque, desde os gestos à cor da pele, tudo em nós é expressão –,  nessa altura, sim, o sujeito diz. Diz o que quer, e o que não quer.



miguel torga
diário VIII
1959




17 junho 2016

miguel torga / ao fogo



Chama da inspiração, que me devoras,
Alarga o teu abraço ao mundo inteiro!
Reduz o pesadelo destas horas
A um braseiro
De amor!
Funde no teu calor
A montanha de gelo e de tristeza
Que nos oprime o corpo e o coração.
E que a grande fogueira da beleza
Seja o sol duma nova redenção.


miguel torga
odes
1946



31 março 2016

miguel torga / agenda



Folheio a vida
Num calendário velho.
Dias riscados, como contas pagas.
Domingos de repouso,
Segundas de trabalho
Sábados de cansaço,
Sem nenhum sentido.
No abismo do nada,
O nada, apenas.
Quem sofreu nestas páginas vazias,
Tão frias,
Tão serenas?



miguel torga
diário X
1968



21 dezembro 2015

miguel torga / combate



Manhã do mundo, que não amanheces!
Tantos poetas a cantar na sombra,
E nenhuma alvorada se anuncia!
Somos nós maus profetas no degredo,
Ou és tu, sol da vida, que tens medo
De iluminar a nossa profecia?



miguel torga
diário VIII
1959



26 outubro 2015

miguel torga / incitamento



Remenda a tua rede, pescador!
Remenda as ilusões!
No maninho areal é que é sonhar!...
Ata e refaz a teia
Onde, queira ou não queira o mar,
Hás-de prender o corpo da sereia!

  
miguel torga
diário IX
1964



02 agosto 2015

miguel torga / regresso


Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.
Tudo o que tenho, o tenho aqui
Plantado.
O coração e os pés, e as horas que vivi,
Ainda não sei se livre ou condenado.



miguel torga
diário XII
1977




29 maio 2015

miguel torga / paz


Caldas da Raínha, 11 de Setembro de 1939


Calado ao pé de ti, depois de tudo,
Justificado
Como o instinto mandou,
Ouço, nesta mudez,
A força que te dobrou,
Serena, dizer quem és
E quem sou.

  
miguel torga
diário I
1941



05 abril 2015

miguel torga / ressurreição



Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.

Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia outono.

Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais
Descansavam apenas um momento.

E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza dum rebento
Na seiva do poema que sonhou.


miguel torga
libertação
1944




09 janeiro 2015

miguel torga / miserere nobis



O que um verso demora!
A esta mesma hora,
Quantos poetas, como eu, à espera!...
Passou o inverno, veio a primavera,
Deitou-se a noite, ergueu-se a madrugada,
E a voz
de todos nós
Cativa na garganta estrangulada!

Nenhum sinal no céu de próximo milagre;
Os adivinhos mal nos adivinham;
E os restantes humanos,
Há infinitos anos
Que apenas tecem
A teia da rotina,
Como o instinto os ensina.

E resta-nos a força
Que empurra os cegos contra a claridade.
Ter confiança é deslaçar metade
Do nó do tempo que o destino aperta.
Suprema descoberta
Doutros que no passado não desesperaram,
E foram premiados, e cantaram.

Mas pesa como um luto
Este silêncio hostil.
E fere como a raiva dum cilício
A certeza da morte
Colada ao corpo.
Que desgraça
Desconhecida,
Se a mudez ultrapassa
A nossa vida!



miguel torga
orfeu rebelde
1958