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16 dezembro 2023

heiner müller / welcome to santa monica

 
Um homem a morrer entra no salão do hotel
Onde outros moribundos matam o seu tempo
Curto ou longo entre nascimento e morte
A falar de negócios ou sós com um copo
No qual habita o esquecimento o recém-vindo
Está marcado com o signo de uma outra morte
A sua figura as suas mãos o olhar e a estatura
Já metade anjo ou uma gravura
De Dürer o pedante da melancolia
Um homem beija-o ele é mesmo de carne
Os seus dias ainda não estão contados
Se é permitido acreditar no que vemos
Eles desaparecem por detrás de uma coluna
Em imitação de mármore passado algum tempo
Uma imagem como tirada de um velho filme
Vejo entre uma palmeira em vaso e uma coluna
O homem de boa saúde sentado num cadeirão
E uma mão já quase descarnada
Que acaricia a sua cabeça uma vez várias vezes
Ele não pode parar ela conta as horas
Frente à embassy da nossa pensão
Com o aquecimento avariado Old World Charm
Diz a tabuleta e Proibido entrar
Um antigo combatente chora o seu gato
Que se esconde no jardim da pensão
He’s my only friend in life you know
I watch him not allowed to enter the garden
I’m afraid they stolen him the name is Tiger
A vida não é o mais elevado de todos os valores
Tiger’s the name Tier Tiger
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
officina noctua
2021





18 outubro 2022

heiner müller / cem passos

 



(segundo Defoe)
 
 
No século da peste
Um homem habitava em Bow, a norte de Londres,
Barqueiro, sem meios nem consideração, mas
Fiel aos seus. Circunspecto mesmo
Na sua fidelidade.
Das cidades a jusante
Onde havia a peste
Ele trazia os víveres rio acima
Para os burgueses ansiosos
Nos seus barcos
A meio do rio.
Assim a epidemia alimentava-o.
Mas a peste estava também
Com a sua mulher e o seu filho de quatro anos
Na sua cabana.
E do rio todas as tardes ele fazia subir, fruto da sua jornada,
Um saco de comida que pousava sobre uma pedra a cem passos da sua cabana.
Depois, estendendo-se, chamava a sua mulher. Observava-a
Quando ela erguia o saco, seguia com atenção cada um dos seus movimentos
Ficava ainda um instante
A boa e segura distância
E respondia à sua saudação.
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
oficina noctua
2021





13 abril 2020

heiner müller / o anjo sem sorte



O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.


heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







08 janeiro 2018

heiner müller / o anjo do desespero




Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã.


heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997











27 maio 2016

heiner müller / poema antigo



De noite atravessando o lago a nado o momento
Que te põe em causa Já não há outro
Finalmente a verdade Que tu mais não és que uma citação
De um livro que não escreveste
Podes escrever uma vida para negar isto na tua
Fita de máquina descorada O texto lê-se à transparência



heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997




16 novembro 2015

heiner müller / vampiro


As máscaras estão gastas fin de partie
Proletário e assassino camponês e soldado
das bocas emprestadas não sai um único pio
desvaneceu-se o poder onde o meu verso
se quebrava como a rebentação da cor do arco-íris
na cerca dos dentes o último grito morreu
BEM-VINDO A WORKUTA COM ( M ) ISSÁRIO
Em vez de muros há espelhos à minha volta
O meu olhar procura o meu rosto O vidro permanece vazio.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp




06 março 2015

heiner müller / enfarte cardíaco



O médico mostra-me a radiografia ESTE É O LUGAR
VOCÊ MESMO PODE VER agora sabes onde deus mora
cinza do sonho de sete obras – primas
três lances de escada e a Esfinge mostra as suas garras
dá-te por feliz se o enfarte te levar de vez
em vez de mais uma aleijado que atravessa a paisagem
trovoada no cérebro chumbo nas veias
o que não querias saber : O TEMPO É A PRAZO
as árvores no regresso a casa descaradamente verdes.


uma criança chora no refeitório
a criança é um monstro da fábrica dos pesadelos
uma variação sobre um tema de spielberg
a mãe, uma montanha de gordura fria
grande é a mãe natureza
e oh os prodígios
da medicina
perfume de rosas e lilases
na anatomia do dr benn


no espelho o meu corpo cortado
dividido ao meio depois da operação
que salvou a minha vida para quê?
por um filho por uma mulher por uma obra tardia
para aprender a viver com a meia máquina
respirar proibido comer a pergunta para quê
que sai facilmente dos lábios morrer
é muito fácil até um idiota é capaz de morrer


Ao passar pelo parque do palácio de Charlottenburg
de repente, o luto
VERDE É A COR DA DESGRAÇA
As árvores pertencem aos mortos.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp




19 novembro 2014

heiner müller / cárie dentária em paris


algo me devora
fumo demais
bebo demais
morro lentamente demais


Ontem comecei
a matar-te, meu amor,
agora amo o teu cadáver
quando estiver morto
o meu pó gritará por ti.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp





15 julho 2014

heiner müller / as imagens



As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, O grou, um pássaro, mais
    nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
    amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

                                      sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.



heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997




28 outubro 2013

heiner müller / hiena



A hiena gosta dos blindados imobilizados no deserto
porque as suas tripulações estão mortas.
Ela pode esperar.
Ela espera até que mil e uma tempestades de areia
tenham corroído o aço.
Então chega a sua hora. A hiena
é o animal heráldico das matemáticas.
Ela sabe que não deve haver resto.
Seu deus é zero.

  

heiner müller





03 junho 2012

heiner müller / coração das trevas segundo joseph conrad




                              Para Gregor Gysi

                 Mundo tenebroso, mundo capitalista
                 ( Gottfried Benn, num diálogo radiofónico
                  com Johannes R. Becher em 1930 )



No Valuta-Bar do Hotel METROPOL
Em Berlim capital da RDA uma puta polaca
Trabalhadora imigrada tenta dar a volta
A um velho às voltas com uma constipação
Entre os capítulos da sua conferência
Sobre a liberdade nos Estados Unidos
Limpa o ranho ao lenço e grita pelo balde do lixo
Ainda abalado com a pena que me faz a sua pesada profissão
Ouço dois homens de negócios em viagem
Pelo sotaque vêm da Baviera
Dividir a Ásia entre si: BOM, A MALÁSIA VINHA MESMO
    A CALHAR
E A TAILÂNDIA TAMBÉM E A COREIA É MAIS UMA
    FATIA DO BOLO
É, E O SISTEMA DE CALHAS EM CRUZ PARA O IÉMEN
AINDA ERA CAPAZ DE O INCLUIR NO PLANO, ASSIM
    A COISA FICAVA COMPOSTA
                                                      E A CHINA TAMBÉM NÃO
    FICA DE FORA
A CHINA FOI O ÚNICO PROJECTO QUE SE VENDEU
Na estação do metro JARDIM ZOOLÓGICO/
    FRIEDRICHSTRASSE
Conheci dois cidadãos da RDA
Um deles conta O meu filho que tem três semanas
Nasceu com um cartaz ao pescoço
ESTIVE NO OCIDENTE NO DIA NOVE DE NOVEMBRO
A minha filha da mesma idade Eu tenho gémeos
Traz no peito EU TAMBÉM
THE HORROR THE HORROR THE HORROR





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´água
1997



02 novembro 2011

heiner müller / brecht





Em verdade, ele viveu em tempo de trevas.
Os tempos ganharam em luz.
Os tempos ganharam em trevas.
Quando a luz diz: Eu sou as trevas,
Disse a verdade.
Quando as trevas dizem: Eu sou
A luz, não mentem.






heiner müller
trad. joão barrento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001






26 dezembro 2009

heiner müller / anjo sem sorte 2







Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento nos ombros a mão
Estrangeira na carne solitária
O anjo ainda o ouço
Mas já não tem rosto a não ser
O teu que não conheço





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







08 dezembro 2008

heiner müller / as imagens








As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, o grou, um pássaro, mais
nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997





25 março 2007

o pai




1

Um pai morto talvez tivesse
Sido um pai melhor. Melhor ainda
É um pai nado-morto.
Volta sempre a crescer erva sobre a fronteira.
Tem de ser arrancada a erva
Sempre sempre a erva que cresce sobre a fronteira.


2

Gostava que o meu pai tivesse sido um tubarão
E despedaçado quarenta pescadores de baleias
(E eu aprendido a nadar no seu sangue)
A minha mãe uma baleia azul o meu nome Lautréamont
Falecido em Paris
Incógnito em 1871









heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997