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22 fevereiro 2020

fernando echevarría / em certas casas



Em certas casas o silêncio quase
reduz as estruturas à evidência,
de forma a os alicerces lhes fundarem
aquela irredutível diferença
que as institui. E desentranha a habitável
capacidade de luz e de paciência.
Porque o silêncio as sabe
translúcidas. Sua substância entra
com um alento de subtilidade.
E por dentro dos poros a sustenta.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998








22 dezembro 2018

fernando echevarría / na aldeia




Na aldeia, os anjos quase que ficam sendo
lugar de paração. Por onde as árvores
só desenvolvem o tempo
na poeira das quelhas sem idade.
O estio mensura-lhes o alento.
E a secura estende-se imutável
pela atenção de ver como o silêncio
isola cada ruído na sua eternidade.
Mas é nos adros, quando o calor o eixo
imobiliza da tarde,
que o anjo das aldeias nos aparece aberto
respeito onde o azul quase que range.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998






09 setembro 2018

fernando echevarría / domingo




Ficou-lhe a paz. Do tempo
em que, movido o olhar à santidade,
parávamos no campo vendo
correr a água e adubar-se o caule
que abrirá sua roda de sustento
à fadiga do homem, que uma coroa de aves
reconhece no ar, de estar aberto
à cálida saúde da passagem.
Depois da missa, pelo domingo adentro,
crescia essa saudade
fresquíssima de estarmos tão atentos
à tarefa que, sem nós, a tarde
cumpre na terra. E mesmo ao pensamento
que amadurece nas árvores,
tocadas de longe, no estremecimento
que se enreda por nós e em nós se abre.
Ficou-lhe a paz. O doce movimento
que nos inclina para a primeira idade.




fernando echevarría 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







14 junho 2018

fernando echevarría / não via o que olhava



Não via o que olhava. Via
no pensamento pulsar
uma como que rua a respirar sozinha
e, dentro dela, um cálido animal.
E, por trás de ambos, uma veia tinha
a invisível altura de se doer com tal
inteligência que o azul batia
cumprindo-se em seu limbo de púlpito eficaz.
Não via o que olhava. Mas o animal rompia
a ser. Seu vulto triunfava boreal.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998








18 janeiro 2018

fernando echevarría / o vinho acaba por encostar-se ao sono




O vinho acaba por encostar-se ao sono.
E, uma vez aí chegado, brilha.
Com toda a linha de encosto
a dar sobre a falésia anoitecida.
O vinho deixa a escuridão do mosto
por um almude de escuridão antiga.
E vai, depois, equilibrar o bojo
do casco. De onde o rubro fundo tira
o brilho incorruptível que leva para o sono
e canta nas falésias da vigília.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





02 dezembro 2017

fernando echevarría / o horizonte aproxima



O horizonte aproxima
um lugar de pensamento
que a neve traz. Se resigna
à espessura de silêncio
que assenta. Anula a energia
com que desertou o vento.
A luz reconhece-se íntima.
Não abate o candeeiro,
é a neve que a liga
àquele conhecimento
que se recolhe em mobília
adormecendo por dentro.
Agora, a noite confirma
o sono a descer. O vento
tem a neve toda em cima.
Só os lobos estão abertos.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




07 setembro 2017

fernando echevarría / é no verão que as árvores a sombra




É no verão que as árvores a sombra
da sua vegetal  clemência  nutrem.
Recolhem a frescura. Noite fora,
a massa fantomática difundem
de forma a o peso se surpreender. E as horas
pararem na folhagem. E na luz que
consente apenas que se adivinhem formas
de longe singular. De que o perfume
abstrai o eco de pensar a lomba
e, ao fundo, o rio a pressentir-se. Porque
a noite se refresca e cumpre a volta
a um mundo que renova quanto cumpre.


Mas é depois, quando o calor arvora
o seu timbre de pino e placa oculta,
que as árvores devolvem, mais que sombra,
um refrigério de razão vetusta
e um ócio de sesta a abrir a porta
a um sono de brisas. Que nos funda
a ligeireza de durar a história
por uma tarde que já nem se escuta.




fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




27 julho 2017

fernando echevarría / tem a secura virtual do luto




Tem a secura virtual do luto
a sua luz implícita.
E o ímpeto convulso
que há-de inflamar a energia
do estrépito compacto. Para o susto
percutir a dureza de faísca.
Alastra estar para eclodir o mundo.
Ou, nem nebulação de massa ainda,
essa iminência de secura e luto
condensa acaso o seu rastilho estrita.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





16 fevereiro 2017

fernando echevarría / as janelas dão sempre para estarmos



As janelas dão sempre para estarmos
a ver por elas o que não se vê
 – o ponto onde o fenómeno é epifania de acto,
a palpitar por trás no tempo só de ser.

E deitam a crescer de forma tal que quando
vêem melhor, crescer
é, sobretudo, emudecer seu quadro
no pulso imperceptível que toda a ausência tem.


fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




03 abril 2016

fernando echevarría / se for nevar



Se for nevar, ficaremos
como quem espera a neve
– no intervalo sonolento
aonde somente cresce
estar esse alguém perdendo,
não o ver, o que o sustente.
Recolheu-se já o vento.
E encostou recolher-se
ao sono. Que, desde dentro,
puxou o sono por esse
pensar cada vez mais lento,
do intervalo aonde cresce.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998



20 março 2016

fernando echevarría / da nossa própria noite se levanta



Da nossa própria noite se levanta
aquela imóvel espécie de negrura
onde tudo é possível – as galáxias,
ou pulsar nulo de galáxia alguma.
E até a expansão, a criar alta
Invisibilidade. Mas que suga,
quando o assunto for mais denso, a graça
de um maior brio de altura.
E a outra noite pela nossa canta,
não luzes de prestígio, a só penúria
que, quase instrumental, se exerce. Instaura
um dentro fora de dimensão alguma.
E é de aí que a noite se levanta
e o mundo da insistência continua.


fernando echevarría  
geórgicas
afrontamento
1998



26 fevereiro 2014

fernando echevarría / adeus



Quando eu, de tão longe, for azul,
pensai em mim.
De longe, ver-vos-ei
mais do que vi.

Como ilhas
que perdi
do coração. E sinto
doer fora de mim.

          Porque me leva um anjo.
como uma pomba
o tenho dentro.
E ele tem-me em onda.

Quando eu, além de azul…
Pensai que «o levou
um anjo inexorável
que tinha coração».



fernando echevarria
entre dois anjos
1956



11 dezembro 2012

fernando echevarría / prólogo




Do outono que termina
nenhuma coisa é perto.
Cada uma culmina
em tudo ser aberto

e claro movimento
sem uma qualquer história.
Que ser no pensamento
é obra sem memória.

Ou, se memória fosse,
da longa caminhada
guardaria o que trouxe

- a paz de ser pensada
e uma mágoa doce
de outono e de mais nada.


Aonde formos iremos
pensando esta luz que passa.
Esta luz que, agora, vemos
molhada além da vidraça

mas que, pensada, ilumina
outro rio e outra rua
e muda mesmo à retina
o modo de se ver sua.

Sem que, por isso, no rio
mude, ou na rua, o passar.
Tudo segue o mesmo fio

em retina igual. Só o ar
tem um contorno mais frio
na margem de ver passar.



fernando echevarría
introdução à filosofia
edições nova renascença, porto
1981