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08 fevereiro 2024

ana hatherly / a minha vida é poética

 
 
 
A minha vida é poética:
Paira entre a vaga mentira e a realidade.
 
O amor me acontece
Como as folhas às árvores,
E tão singularmente,
Que já nem sei se é natural à árvore ter folhas
Ou estar nua…
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980
 




30 setembro 2023

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
337
 
A minha poética do real manda-me que o diga. Mas o que vêem os meus olhos? O melhor do que eu vejo não se vê olhando. Penso nisso e depois escrevo: como eu gostava de poder acreditar nessa vaidade que a todos deita por terra.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 






09 julho 2023

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
228
 
Neo-apocalipse: Quando a população do mundo tiver aumentado tanto que o seu peso ultrapasse todas as leis conhecidas, então tudo se soltará da superfície da terra e os próprios seres que hoje eu me admiro de não ver cair pelo espaço fora irão cair ainda mais infinitamente pelo espaço de não-ser.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006






29 dezembro 2022

ana hatherly / 463 tisanas




236
 
Os grandes erros que se cometem na vida são erros recorrentes. Sempre repetimos os mesmos erros, isto é, o mesmo erro, e é esse erro que finalmente nos define, porque não se trata de um erro mas de uma situação-limite. Mas esta terminologia é absolutamente inadequada.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006





 

29 setembro 2022

ana hatherly / os pardais



 

Era de manhã e os pardais estavam de roupão
um roupão proletário de flanela
apertado de qualquer maneira abaixo da cintura.
Todos os pardais são fêmeas
senhoras 1900
com a cintura artificialmente vincada
e as nádegas em zeppelin.
Grandes olhos dolorosos
acusam a dureza das barbas de baleia
de resto órgãos de trituração
mesmo na baleia.
Uma vez vi um desenho mostrando como, graças ao espartilho,
os órgãos internos ficavam deformados e era curioso verificar
como os rins pareciam duas apetitosas salsichas
o que transformava o busto num confortável balcão de snack-bar
onde os viris machos iam dando displicentes dentadas enquanto
Freud observava que nem só os machos têm o amor húmido.
Mas eles não sabiam
e continuavam a sua digressão topográfica.
 
Era de manhã
e os pardais agitavam a cauda
como quem tem um tic nervoso.
Na capa dum livro um poeta de perfil estava meio zangado meio
atónito olhando para longe, para a eternidade, suponho, e por
isso o seu olho já tinha perdido pálpebra e pestanas. Na verdade
o cabelo tornara-se obsoleto e agora era apenas a simples passagem
do lápis do desenhador sobre a brancura do papel, o qual se tornara
entretanto roxo, talvez de sufocação, como quando se tem um
frasco de perfume tempo de mais debaixo do nariz.
Deve ser assim a sufocação da eternidade.
Talvez seja uma sufocação boa, contudo, como ler
qualquer coisa que se torna subitamente importante na nossa vida
sem sabermos porquê.
E de repente todo o resto se torna intolerável.
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980


 


17 março 2022

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
72
 
Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. Depois regressava a casa.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006




 

21 agosto 2021

ana hatherly / 39 tisanas

 
 
32
 
A amizade é um sentimento de difícil definição. Na prática porém todos concordam que ela se traduz acima de tudo por serviços prestados. Eu tinha um amigo grande melómano que tocava variados instrumentos. Muitas vezes eu ia a casa dele e ficava ouvindo-o tocar piano flauta viola clarinete e até trombone. Um dia eu disse-lhe e de órgão você não gosta e ele disse ah quem me dera. Fiquei calada no dia seguinte dirigi-me a uma loja especializada na venda de instrumentos musicais e comprei um órgão meti-o imediatamente num táxi e fui levá-lo a casa do meu amigo a uma hora em que ele não estava deixei passar uns dias quando telefonei para saber se tinha gostado disseram-me
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980
 




01 julho 2021

ana hatherly / 39 tisanas

 
17
 
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







25 setembro 2020

ana hatherly / 463 tisanas

 
45
 
De cada vez que respiro sei que alternadamente perco e recupero o meu corpo. Depois penso que é na preia-mar da respiração que o meu corpo se forma, nesse intervalo. (Quando as pessoas dormem ou estão no cinema, por exemplo, o ar do recinto fica alternadamente cheio e vazio de corpos!) Respirar o corpo para fora inspirar o corpo para dentro. Eis como a ginástica é uma forma de vampirismo. Penso nisto quando estou na praia olhando um homem deslizar numa prancha de surf por uma onda fora. De repente desequilibra-se e cai. Tudo o que é profundo se revela à superfície.
 
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 




12 junho 2020

ana hatherly / 463 tisanas


391

Tenho épocas em que sonho muito. Uma vez sonhei que estando de visita a uma casa desconhecida sou assaltada por um enxame de pequeninas moscas pretas que me cobrem o rosto. Para me livrar delas pego num frasco de álcool e chego-o aos olhos. Todas as mosquinhas caem lá dentro. Então o álcool torna-se um líquido leitoso cheio de pintas pretas. Aos poucos nessa massa turva surgem formas geométricas: cubos, esferas, pirâmides, cilindros, tudo símbolos de uma ignorada escrita. São lindas. Encantada quero mostrá-las a toda a gente. Acordando, escrevo isso no meu caderno de apontamentos.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006












23 abril 2020

ana hatherly / falas-me em asas



Falas-me em asas,
Em voar…

Não vês que eu não sou nada,
Nem anjo nem pessoa,
Nem ave nem engenho,
Que é totalmente outra
A minha definição?

Eu não sou mais do que o próprio chão…



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







10 março 2020

ana hatherly / 463 tisanas



97

Era uma vez um país onde a morte produzia um som igual ao do vidro que se parte. O céu parecia de papel de embrulho mas os animais eram todos de vidro, especialmente os insectos. Havia mesmo uma grande árvore totalmente habitada por uma espécie de libélulas de vidro azul-escuro. Quando algum animal morria o chão ficava todo cheio de vidros partidos, o que na época dos grandes desastres tornava os caminhos realmente intransitáveis. Os caçadores percorriam os montes munidos de orelhas de prata.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006







24 novembro 2019

ana hatherly / 463 tisanas



346

A noite deslumbrava tão grande era a cintilação do céu. Penso em ti. Quero escrever-te, enviar-te meus pensamentos, a tranquila diferença longe do meu corpo que explode na minha escrita selvática. Mas depois desisto. A renúncia ao desejo é o mais requintado gozo.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006












12 junho 2019

ana hatherly / 463 tisanas



319

O mar é a minha mais antiga obsessão. Vive sempre perto do mar e dum mar que encheu a minha infância de alterosas vagas povoando de terror os meus sonhos. Mas longe do mar ainda hoje sinto um inexplicável exílio. Penso nisto lendo um livro de A. S. De repente, na página 289, está escrito: envelhecer é multiplicar-se interiormente.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006








31 março 2019

ana hatherly / olho




Olho
uma rosa vermelha
numa jarra vermelha
Vejo
o absoluto vermelho
da absoluta rosa



ana hatherly
fibrilações
quimera
2005









27 fevereiro 2019

ana hatherly / príncipe




Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







07 setembro 2018

ana hatherly / o regresso




I

O termo que eu temo
Em mim estremece.
Não é o que passa
Nem aquilo que esquece
Que o meu ser receia
É antes
Essa dor contínua
Que de si mesma se torna cadeia.
Se alguma dor existe
Que o termo não atinja,
Não existe porém termo algum
Que a própria dor não finja:
Sentes? Mentes.
Sabes? Não vês.
Quando descobres, passaste
Quando interpretas
Esqueces.


II

A senda que eu sigo
É a meta que atinjo.
Partindo, regresso
E regresso avançando.
Temendo é que eu venço.

Chorando, me alegro
E sofrendo, embeleço
Entendendo a ordem
Oculta e evidente:
Ou amo e morro
Ou vivo e não amo.


III

As lágrimas que dos meus olhos caem
São o teu pranto em mim realizado.
As tuas penas em mim se vivificam
E o teu sofrer em mim encontra forma.
O teu silêncio é a minha voz mais funda,
O teu querer, a minha esperança intensa,
De sorte que não existe morte
Tua que a mim me não pertença.
E a solidão que de alma a alma aumenta
O anseio do encontro antigo,
É a inarmonia que vive
Da diferença que a desunião gera.
Reúne-te comigo no meu chamamento,
Reúne-te comigo ao que nos demora,
E levemos connosco o fim desta espera!



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980









11 agosto 2018

ana hatherly / 463 tisanas


  
41

Sento-me à porta de casa e penso. o céu onde começa? é imediatamente acima do chão? do outro lado da minha casa passa o rio. um pescador espera paciente enquanto outro se prepara para regressar. deito-me no chão e mergulho a cara na terra.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006









28 julho 2018

ana hatherly / o vermelho por dentro




Estão envolvidos em corpos negros vermelhos por
dentro. Estão num barco sobre o mar e o mar é
negro. É de noite. O céu está negro e sobre a
água negra tudo é vermelho por dentro.

Os corpos eram negros
sobre o mar a água era de noite
não se via o vermelho por dentro
os corpos não se viam
eram barcos com ventres todos negros
e as línguas eram de águas muito rentes
A sangue não sabia
não se via o vermelho por dentro
o céu a água envolvia
tudo envolvia nos vermelhos dentros
e os mares todas as noites estavam negros
negros por dentro
E a água volvia pelo céu tão negra
e à noite por dentro do mar todo vermelho
a noite era vermelha
e os barcos negros por dentro
E nos corpos a água negra era vermelha por dentro
e eles estavam envolvidos
e



ana hatherly
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001