28 fevereiro 2017

artur lundkvist / agadir



Naufrágio, não no mar mas em terra,
o solo firme havia começado a agitar-se como um mar,
tinham naufragado as casas como navios, desfeitos nos es-
colhos.
Talborj, a cidade branca, a parte mais densamente habi-
tada pelos marroquinos,
era uma só ruína, como se tivesse sido passada por potente
moinho,
onde se acamava o pó como leite derramado por oda a
parte e os náufragos erravam à sua volta,
tais múmias erguidas da poeira estratificada de milhares
de anos, levantando, ao moverem-se, nuvens de pó branco,
manchado de sangue, embebido de sangue como laca em
papel branco.
E os mortos jaziam como desenterrados duma pederneira,
o cabelo como talhado em pedra branca por sobre as más-
caras de gesso dos rostos,
rondavam os cães como brancos fantasmas, receosos,
os ratos corriam em volta, brancos à luz do sol, ousados,
eram brancas as árvores e pareciam mortas, fumeando ao
vento,
a água escorria sob películas brancas, demasiado resis-
tentes para se romperem,
as crianças que choravam de mansinho cavavam com os nós
dos dedos, em volta dos olhos, sulcos cada vez mais sombreados,
na alvura dos rostos.


artur lundkvist
agadir
trad. de silva duarte
delfos
1962





27 fevereiro 2017

marguerite yourcenar / utilidade do amor



Utilidade do amor. Os voluptuosos arranjam-se para conseguir sem ele a exploração do prazer. Não sabemos que fazer dos delírios, no decurso de uma série de experiências sobre a mistura e a combinação dos corpos. Depois, descobrimos que há descobertas a fazer num hemisfério sombrio. Tínhamos necessidade dele para nos ensinar a Dor.


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995



26 fevereiro 2017

alberto caeiro / e há poetas que são artistas


XXXVI

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




25 fevereiro 2017

vitorino nemésio / nada



Eu no meu corpo como o tigre no seu bafo.
O mundo leva iguais a jaula e a casa.
Somos a vida que não é,
Fora não ser a morte.
Nem mesmo nada somos:
Estamos no que fomos
À espera do que importe.

Não se pode sair, e entrar já não:
Nada já deu entrada ao só nascido
Que é esse mesmo Nada:
Pelo que Nada não é nada,
Mas é nada
Em Deus que tudo gera.
Eu na minha alma como o bafo no seu tigre.




vitorino nemésio
o verbo e a morte
antologia poética
asa
2002



24 fevereiro 2017

gil t. sousa / o erro de deus



esqueçamos então que a loucura
é hábil e que é pelo corpo que se escoa
o tempo

e que o corpo é um vento que
nos abandona e nos deixa sem nome
para o sangue, ou para as mãos

a nossa solidão é íngreme
como as grandes fragas negras
sob o voo dos pássaros – esse abismo
onde muito levemente os olhos se deixam
ainda chamar por outros olhos

e a eternidade desiste docemente
como se fosse um erro de deus



gil t. sousa





23 fevereiro 2017

natália correia / a recusa das imagens evidentes




Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.


natália correia
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




22 fevereiro 2017

saint-john perse / estrofe




Amantes, ó retardatários entre os mármores e os bronzes, no
estiramento dos primeiros fogos da noite,
                Amantes que vos caláveis no seio das multidões estrangeiras,
                Também testemunhareis esta noite em honra do Mar:



saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




21 fevereiro 2017

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos



perdi – quando partiste –
o completo sentido das metáforas…
terei adiado para outras tardes
abreviadas conversas
de suspeitos projectos?
– ou arrastado os olhos
para verdes mares
de idênticas cores?!
falo do Império
como do teu;
não mais fustigarei as palavras:
possibilidade inscrita no corpo
pela exaustão do silêncio,
deste
que fala o que digo
– vez de mim para ti,
como se pelo espelho –
enquanto agarro
este e outro
coração nos meus gestos.


r. lino
políptico
companhia das ilhas
2016



20 fevereiro 2017

marin sorescu / quadros



Todos os museus têm medo de mim:
Sempre que fico o dia inteiro
Diante de um quadro
No dia seguinte anunciam
O desaparecimento desse quadro.

Todas as noites me apanham a roubar
Noutras partes do mundo,
Mas eu nem ligo
Às balas que me assobiam ao ouvido,
E aos cães-polícia que já conhecem
O cheiro das minhas pegadas
Melhor do que os namorados
O perfume da amada.

Falo em voz alta com as telas
Que põem em perigo a minha vida,
Penduro-as nas nuvens e nas árvores
E recuo para obter perspectiva.

Com os mestres “italianos” podes facilmente conversar.
Que ruído de cores!
É por isso que sou logo apanhado com eles,
Visto e ouvido de longe,
Como se tivesse papagaios nos braços.

O mais difícil é roubar Rembrandt:
Estendes a mão e encontras a escuridão —
Ficas apavorado, os seus homens não têm corpo,
Apenas olhos fechados em adegas escuras.

As telas de Van Gogh são loucas,
Rolam e dão cambalhotas,
Tens de prendê-las bem
Com ambas as mãos,
Pois são sugadas por uma força lunar.

Não sei porque é que Breugel me faz chorar,
Não era mais velho do que eu,
Mas chamaram-lhe velho,
Porque sabia tudo quando morreu.

Procuro aprender com ele,
Mas não posso conter as lágrimas
Que escorrem nas molduras douradas
Quando fujo com as estações debaixo do braço.

Como vos disse, todas as noites
Roubo um quadro
Com uma perícia invejável.

Sendo o caminho muito longo,
Sou finalmente apanhado,
Chego a casa a altas horas,
Cansado e rasgado pelos cães
Trazendo comigo uma reprodução barata.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




19 fevereiro 2017

luís vaz de camões / todo animal da calma repousava,



Todo animal da calma repousava,
Hilário o ardor dela não sentia,
que o repouso do fogo em que ele ardia
consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava
o doce som das mágoas que dizia;
mas nada o duro peito comovia,
que na vontade d''outrem posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,
no tronco de uma faia, por lembrança,
escreve estas palavras de tristeza:

«Nunca ponha ninguém sua esperança
em peito feminil, que de Natura
somente em ser mudável tem firmeza».


luís vaz de camões
sonetos


18 fevereiro 2017

álvaro feijó / porque viste chegar


Porque viste chegar
em carros que custaram
quantias fabulosas
ladies loiras,
signoras encantadoras
e os seus inseparáveis cães de luxo,
porque as viste chegar cheias do pó da estrada
e com ar de quem
teve perto de si o sofrimento,
choraste.
Valeu a pena? Não!
Valia a pena chorar por aqueles
que vinham
a pé.

Novembro de 1940



álvaro feijó
os poemas de álvaro feijó
portugália
1961



17 fevereiro 2017

harold pinter / naquele tempo



Bom, não havia problema.
Todas as democracias
(todas as democracias)

estavam connosco.

Por isso tínhamos de matar umas pessoas.
E então?
Os das esquerdas às vezes são mortos.

Era o que costumávamos dizer
Lá naquele tempo:

A tua filha é das esquerdas

Vou meter-lhe este aríete
Por ali acima acima acima
Mesmo por dentro e até lá acima
Mesmo por dentro do seu imundo corpo das esquerdas.

E isso parou os das esquerdas.

Pode ter sido naquele tempo
Mas  digo-te que esse é que foi um bom tempo.

De qualquer forma todas as democracias
(todas as democracias)
Estavam connosco.

Diziam: só não
(só não)
Digam a ninguém que estamos convosco.

Só isso.
Só não digam a ninguém
(só não)
só não digam a ninguém
Que estamos convosco.

Matem-nos só.

Bem, a minha mulher queria paz.
E os meus filhos pequenos também.
Por isso matámos todos os das esquerdas.
Para darmos paz aos nossos filhos pequenos.

De qualquer forma não havia problema.
De qualquer forma estão todos mortos de qualquer forma.

1996


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




16 fevereiro 2017

fernando echevarría / as janelas dão sempre para estarmos



As janelas dão sempre para estarmos
a ver por elas o que não se vê
 – o ponto onde o fenómeno é epifania de acto,
a palpitar por trás no tempo só de ser.

E deitam a crescer de forma tal que quando
vêem melhor, crescer
é, sobretudo, emudecer seu quadro
no pulso imperceptível que toda a ausência tem.


fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




15 fevereiro 2017

sophia de mello breyner andresen / corpo a corpo



Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casas onde ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
poesia I
caminho
1999




14 fevereiro 2017

eugénio de andrade / frente a frente



Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
– e é tão pouco!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




13 fevereiro 2017

josé gomes ferreira / a morte para nós, a turbamulta


XIII

A morte para nós, a turbamulta,
nada descerra
nem oculta…

É apenas este ritmo entre nós e a Terra.


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971




12 fevereiro 2017

jorge de sena / aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males


Se acaso um dia o raio que te parta
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) -
- tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes,
ou sejam todos quantos pavoneam
o consolo inocente de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.

Porque não há ninguém por mais que te ame,
Ou por mais que seja teu amigo (e,
Com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
Fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
Que te perdoe que tu não tenhas estourado,
No momento em que se soube que estouravas.
É uma "partida"(ou um "regresso" sem piada nenhuma)
Absolutamente e aterradoramente inaceitável,
Humanamente e vitalmente imperdoável.
Pelo que, sobrevivente, pagarás como se diz,
Com língua de palmo. Se és um pobretano,
Solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas,
Que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito,
Uma tontura, um como que silêncio negro,
Podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante,
Está livre de ocupações permentes para te acudiar.
Uma que outra vez apenas, para alívio,
dos borborigmas morais dos seus estômagos,
Irão visitar-te carinhosos. Outros
tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem,
E quando em desespero tu reclamas.

Não contes com mais nada senão morte,
Se tens família, amando-te sem dúvida,
Inteiramente dedicada a ti que seja ou é,
Não penses que não és constante imagem
Sem desculpa alguma de andar pela casa,
Um pouco vacilante, às vezes suplicando,
Uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te,
A fazer referências tidas de mau gosto
À espada que para onde vás segue suspensa
Sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém
Até contraditoriamente porque te amam,
Suportam que não sejas quem tu eras,
Mas só a morte adiada, o que é diverso,
Do horror de um cancro que não se sabe
Quando matará mas é criatura de respeito,
Crescendo em ti como se estiveras grávida.
Assim, meu caro, com coração desfeito
Sem metáfora alguma, és apenas uma
Indecorosa e miserável chatice.

Portanto, irmãos humanos, se estourais,
Estourai, por uma vez aliviando
Quem vos quer ou não quer por uma vez.


jorge de sena
40 anos de servidão
moraes
1979