15 julho 2017

herberto helder / fonte



V
Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa,
formusura inclinada sobre a descerrada cinza
e o frio dos retratos.
E espero que a seiva ascenda a um puro gosto
de reaver tua grave cabeça de mãe
com platina entre a aragem, seiva que inspire
o vermelho de uma face entre vivos
que adormecem no vinho e acordam
para o pomposo início dos destinos. Rogo
apenas que meus dedos não esqueçam o pão e a tristeza,
e a boca vibre como um pensamento
na substância de um seu instante –
carnal, irremovível.

E se morrer é a alta vocação das manhãs marcadas
pelas uvas – peço-te, mãe um dia
composta sobre a veemente confusão
das forças e dos números, que resguardes
entre as descuidadas dobras de pedra
o fulgor subtil de onde plátanos e aves recebiam
uma vida de quase dolorosa
beleza.

Partem-se, rente à primavera que nos cobria
de previsão e de silêncio,
os sentidos que havia sobre o teu rosto manchado.
E então é para ti, pequena e imensa coisa
engastada no alto das águas, no fundo de
desmemoriadas sementes – para ti só,
mãe engolfada no próprio leite renascente, que
se elevam uns lábios como feridos, tocados
pelo sumo incompleto, pelo podre sono da próxima
incontida primavera.

O que se diga está sagrado na frescura de um novo
coração. Por isso o ouro, como o inseguro passo
de um dia que traz a morte em sua intensa
juventude, roça a forma do espírito
em que tu mesma te buscavas – rápida e quente
em nós, no equilibrado idioma
de fomes e sorrisos que nunca
se decifram.

Num lugar onde a sombra é gémea
de um fogo irrevelado, jamais
se fazem mortes que se não destinem a um escarlate
de rosa. Jamais se adormece,
que não seja para ler um estuante anúncio
nas pálpebras que se apagam.

Por isso, como um instinto, nasces
da tristeza e te arrebatas, nasces como os bichos
da matéria dos seus dias, ou os frutos
que vacilam no bojo das auroras,
e em seu signo se embebem – até que o tempo os faz
violentos,
                   sagrados,
                                    impalpáveis.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996




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