30 dezembro 2009

wallace stevens / seis paisagens significativas








III


Meço-me
Contra uma árvore alta.
Acho que sou muito mais alto,
Pois chego mesmo até ao sol,
Com os meus olhos;
E chego à praia do mar
Com os meus ouvidos.
Todavia não gosto
Do modo como as formigas rastejam
Para dentro e para fora da minha sombra.






wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991







29 dezembro 2009

miguel esteves cardoso / tempo






Em Portugal tudo o que há para o dia seguinte é feito de véspera. Até o Natal, ao contrário doutros povos, é feito de véspera. Para compreender isto tudo, é preciso olhar para a maneira como os Portugueses observam o tempo. O Natal é um bom exemplo, começando logo pela consoada. Que outra nação tem, por prato representativo, um peixe que vive a milhares de milhas náuticas da costa nacional, que leva meses inteiros a chegar a Portugal e que, quando chega, ainda tem de ficar vinte e quatro horas de molho antes de podermos comê-lo? Por isso é que Portugal continua em águas-de-bacalhau.

Isto deve-se à paixão que têm os Portugueses pelas coisas muito demoradas e o horror correspondente à frieza desumana da pontualidade. Em 1983 (e desde 1383), passámos o ano a dizer duas coisas: «Dá tempo ao tempo» e o novíssimo, portuguesíssimo advérbio atempadamente.

Em Portugal já se deu tanto tempo ao «tempo», com tanta abnegada generosidade, que agora o tempo, já mal habituado a receber tempo sem nada dar em troca, jamais o devolverá. O tempo que se deu ao tempo ao longo destes 800 anos já deverá ir, segundo os nossos cálculos em mais de 5000 anos. Fazendo as contas, isto dá a Portugal um negativo de cerca de 4200 anos. E olhando para o país, é fácil verificar que o número não anda muito longe da verdade. De facto, a própria História de Portugal anda cronicamente desfasada do tempo. Sob muitos pontos de vista, ainda estamos na aurora do Neolítico.

Atempadamente é um advérbio que utilizam os governantes quando lhes fazem a pergunta mais malcriada que há no contexto cultural português, «Quando?». Significa, em termos sumários: «Devagar, e mais ou menos quando nos der na real bolha, depois se verá, talvez, nunca se sabe, seja o que Deus quiser, e já é um grande pau.»

Em Portugal anda tudo atrasado, e isto só quando chega a andar. Os horários de televisão não são cumpridos desde a primeira emissão experimental dos anos de 1950, e os comboios, como toda a gente sabe, circulam segundo um vetusto horário cósmico, perdido nas brumas do tempo e inteiramente ligado aos ritos ligures de transportes dos Mortos, que remontam às primeiras ocupações da Península. Se às vezes correspondem aos horários impressos numa faceta de Jazz Age (que Pascoaes tanto abominava), isso deve-se à lei matemática da coincidência e não pode ser evitado.

Os autocarros, também, em vez de saírem sozinhos com intervalos certos, preferem deambular pela cidade em composições autóctones de três ou quatro unidades iguais (já vimos uma belíssima formação de seis 45 a subir a avenida da Liberdade). Isto deve-se, ao que se julga, a questões de mútua protecção contra os numerosos bandos de «utentes» que vagueiam pelas ruas a tentar saltar-lhes para cima.

A agenda para 1984 da Newsweek, que inclui uma secção sobre os hábitos comerciais da Europa, diz, quando chega a vez de Portugal, que convém «chegar 15 ou 20 minutos depois da hora marcada, para evitar longas esperas». É um conselho útil, porque os Portugueses são muito especiais em questões de pontualidade. Vir em cima da hora, como indica a própria bruta1idade da expressão, é uma actividade mais do que levemente obscena e socialmente desencorajada. Em Portugal, quem cai na asneira de chegar à hora marcada arrisca-se a que digam dele, que «veio logo à ganância, o sacana do estrangeirado».

Basta ver que, em português, um «caso pontual» indica um fenómeno excepcional, imprevisível e insignificante. «A hora marcada» é uma mera referência heurística para situar vagamente um evento de cuja ocorrência só Deus tem a certeza. Tal como dizem as mulheres de vida difícil aos clientes impetuosos («Ó filho, não me marques...»), as horas portuguesas também não gostam de se deixar marcar. E quem as marcar, arrepende-se.

Os Portugueses sabem que estão no meridiano britânico de Greenwich, mas é considerado rudeza denunciar este facto ao mundo. Se têm uma adoração obsessiva pelos cronógrafos de pulso que fazem bip bip, têm luzinhas de Natal e estrelam ovos, é só para se poderem certificar que continuam alegremente atrasados. Se o país tivesse um lema, seria certamente «Não deixes de deixar para amanhã o que já ontem deixaste para hoje».

Noventa e nove por cento da produção literária portuguesa encontra-se, como todos sabemos, «no prelo». Há vários sécu1os que astrólogos e neurólogos de gabarito internacional tentam situar esse obscuro lugar onde se diz vegetarem as obras-primas do futuro, mas pouco se conseguiu apurar, excepto tratar-se, natura1mente, de uma vasta zona sideral, situada na parte anterior esquerda do cérebro (também conhecida por «gaveta») do escritor ou editor, que se manifesta sobretudo à mesa do café e que tem a particularidade mental de não conseguir albergar cromossomaticamente o conceito do «tempo».

O que em Portuga1 não está no «prelo», está «na forja», que fica mesmo ao lado e que é um bocado pior. Os responsáveis dizem sempre, em defesa deles, que «devagar se vai ao longe». A ciência moderna, porém, permite atestar que devagar mais depressa se vai ao ar do que ao longe. Hoje em dia, são poucos os que lá querem ir (ao «longe») e por isso o mais habitual é não se ir. E mesmo assim, porque estamos em Portugal, a maneira como não se vai também é, evidentemente, devagar.

Isto é tanto assim, que até a voz da menina que responde quando discamos o «15» no telefone pertence a uma artista estrangeira. Muitas candidatas portuguesas quiseram preencher o lugar, mas o melhor que alguma delas conseguiu, segundo os registos da TLP, foi «Lá para o terceiro ou quarto sinal, ou lá como é que isso se chama, serão aí umas nove e picos, mais coisa menos coisa».
Por causa de tudo isto, o país inteiro está atrasado. A vanguarda está à retaguarda, e a retaguarda já não aguarda absolutamente nada. Uns e outros fazem revistas que, tal como as formações de autocarros atrás citadas, saem juntinhas em números triplos e quádruplos, cerca de seis a nove meses depois da temida «data anunciada». A «data anunciada», em Portugal, tem um significado exclusivamente sebastianista. Nessa data, Dom Sebastião aparecerá na barra, numa caravela branca com o segredo da entrada para a CEE, e as revistas e os comboios, as consultas no dentista e os programas de televisão, tudo sairá a tempo, na «data anunciada» de que nos falou Bandarra.

As únicas coisas às quais os Portugueses chegam cedo são, em primeiro lugar, aos desafios de futebol e, em segundo lugar, à conclusão que não vale a pena chegar cedo a seja o que for.

«Mais vale tarde que nunca», diz o povo, mas o ditado esquece-se de elucidar que, para os Portugueses, não há nada, nem cedo, nem a horas, nem a tempo, que va1ha mais do que tarde. Tarde, pela tardinha (que outro povo trata a tarde com tanto afecto diminutivo?), é quando mais bem se não fazem as coisas que há para fazer. A «manhã» não existe. Dê-se a contracção de a e de manhã e ver-se-á que a única coisa que existe em Portugal é «amanhã».






miguel esteves cardoso
explicações de português
assírio & alvim
2001


26 dezembro 2009

heiner müller / anjo sem sorte 2







Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento nos ombros a mão
Estrangeira na carne solitária
O anjo ainda o ouço
Mas já não tem rosto a não ser
O teu que não conheço





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







23 dezembro 2009

raul brandão / tudo o que me podes dizer






Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade – porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem na vibração, nem na ternura…
O momento em que me sorriste, baloiçado entre o nada e o nada, nunca mais se voltaria a repetir, idêntico e completo, em todos os séculos a vir! Estava ali a morte… está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo, tudo o que me podes dizer – já eu o disse a mim próprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, só a mim próprio me interrogo.





raul brandão
húmus
(novas máximas)
frenesi
2000








20 dezembro 2009

kenneth koch / a magia dos números








A MAGIA DOS NÚMEROS - 1

Que estranho era ouvir a mobília no andar de cima!
Vinte e seis anos eu, e tu vinte e dois.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 2

Perguntaste-me se queria correr; disse-te que não e fui andando.
Tinha eu dezanove e tu sete.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 3

Sim, mas gostará X realmente de nós?
Ambos tínhamos vinte e sete anos.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 4

Pareces-te com o Jerry Lewis ( 1950 )

A MAGIA DOS NÚMEROS - 5

O avô e a avó querem que vás jantar a casa deles.
Eles tinham sessenta e nove anos e eu dois e meio.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 6

Um dia, eu vinte e nove anos, encontrei-te e nada aconteceu.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 7

Não, é claro que não fui eu que fui à biblioteca!
Olhos castanhos, faces coradas, cabelo castanho. Eu tinha vinte e nove anos e tu
dezasseis.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 8

Uma noite em Rockport, depois de nos amarmos, saí e beijei a estrada,
Tão transportado me sentia. Tinha vinte e três e tu dezanove.

A MAGIA DOS NÚMEROS - 9

Eu tinha vinte e nove e tu também. Foi um tempo muito apaixonado.
Tudo o que lia se convertia numa história sobre tu e eu, tudo o que fiz se converteu num poema.








kenneth koch
a magia dos números e outros poemas
trad. antónio franco alexandre
quetzal
1992







16 dezembro 2009

luís miguel nava / paisagens








São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação

publicações dom quixote
2002








13 dezembro 2009

mário cesariny / barricada



Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!

Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




10 dezembro 2009

gil t. sousa / na curva do rio






11/


na curva do rio é que tudo nos espera, é que tudo morre. levam-nos na corrente invisível do tempo, levam-nos no silêncio para nunca mais chegarmos.

ninguém nos há-de esperar no fim da viagem. nunca mais nos havemos de libertar da solidão dos retratos.







gil t. sousa
falso lugar
2004






08 dezembro 2009

alejandra pizarnik / um sonho onde o silêncio é de ouro






O cão do inverno ferra o meu sorriso. Foi na ponte.
Eu estava nua e levava um chapéu com flores e
arrastava o meu cadáver também nu e com um
chapéu de folhas secas.

Tive muitos amores – disse – mas o mais formoso foi
o meu amor pelos espelhos.







alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002







06 dezembro 2009

albano martins / não são apenas os relógios







Também se pode
regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.






albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999








04 dezembro 2009

jorge gomes miranda / o que nos protege






Às vezes tenho medo de esquecer tudo:
a casa onde nasci, o recreio
da escola, essas vozes
que lembram um copo de água
no verão.







jorge gomes miranda
o que nos protege
pedra formosa
1995








02 dezembro 2009

josé miguel silva / já os pesadelos






What a perfect day to think about myself.
The The






Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
Durante muitos anos eu fui hóspede do frio.
Enrolava cigarros para depois da chuva
e não tinha sonhos, somente pesadelos.

O mais recorrente era o do nevoeiro:
ninguém me via, era inútil mandar vir
uma caneca de cerveja, no café.
O meu dinheiro ninguém o aceitava,
ficava parado, fazia de mim um acumulador.

Como nunca saía de casa, não sabia falar
senão com mortos. Parecia-me magia
saber responder boa tarde como vai
à saudação dos vizinhos, pedir do vazio
ao homem do talho, perguntar as horas.

Tempos amargos esses, e hoje,
a mesma coisa, a mesma solidão.
Com a diferença de que sou mais forte agora,
vou à piscina duas vezes por semana,
escrevo poemas para não adormecer.







josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003


29 novembro 2009

jorge melícias / iniciação ao remorso








Procurou de entre todos aquele que mais amava.
Fê-lo em silêncio, afagando os cães
que envelheciam aos seus pés,
enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos
um rosário de sal.
Onde está o meu discípulo dilecto
que não o vejo, inquiriu.
Um homem lembrou-lhe então que partira
há muitas luas atrás,
carregando aos ombros um navio em chamas.

Desde esse dia a memória
não mais deixou de rondar a casa,
e o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas
subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.







jorge melícias
iniciação ao remorso
a mar arte
1998







26 novembro 2009

konstandinos kavafis / páginas íntimas





Nunca vivi no campo. Como outros, nem sequer a planície visitei, a não ser por curtos períodos de tempo. Não obstante escrevi um poema sobre o campo e dei-lhe aquilo que os meus versos lhe devem. Esse poema pouco vale. Nada existe menos sincero do que ele; uma total mentira.

Agora ocorre-me, porém, o seguinte: tratar-se-á, realmente, de uma falta de sinceridade? Não estará a arte sempre a mentir? Melhor dizendo, não será ela tanto mais criativa quanto mais mente? Quando escrevi aqueles versos, não estariam a ser produto da arte? (Não serem perfeitos talvez se não deva a uma falta de sinceridade, pois muitas vezes falhamos tendo por matéria-prima a mais sincera das impressões.) Na altura em que fiz aqueles versos haveria em mim sinceridade artística? Não estaria eu a pensar de uma forma que era como se vivesse, de facto, no campo?







konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994



24 novembro 2009

jean genet / e a tua ferida, onde está?








E a tua ferida, onde está?

Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?

Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.

Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.

Se observarmos o homem ou a mulher
que passam com olhar rápido e voraz
— e também o cão, o pássaro, uma panela —
a velocidade do olhar é que nos mostra,
ela própria e com rigor máximo,
que ambos são a ferida
onde se escondem mal sentem o perigo.

O quê?
Já lá estão, já os conquistou
— deu-lhes a sua forma —
e para ela a solidão:
lá estão inteiros no retesar de ombros
em que passam a concentrar-se,
com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca,
e contra a qual nada podem nem querem,
pois dela é que sabem esta solidão absoluta,
incomunicável — este castelo da alma —
para serem a própria solidão.

È visível no funâmbulo que refiro,
no olhar triste
que deve reportar-se às imagens de uma infância miserável,
inesquecível,
em que ele teve consciência
de ser abandonado.

(...)





jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984






21 novembro 2009

valerio magrelli / imaginei muitas vezes os olhares












Imaginei muitas vezes que os olhares
sobrevivem ao acto de ver
como se fossem hastes,
trajectos medidos, lanças
numa batalha.
Penso então que dentro de uma sala
há pouco abandonada
esses traços devem ficar
por algum tempo suspensos e cruzados
no equilíbrio do seu desenho
intactos e sobrepostos como os paus
do mikado.






valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993




18 novembro 2009

andre breton e paul éluard / a surpresa






Quando, agarrado na garganta pelo sentimento da duração, o homem renuncia a derrubar as absurdas construções da sua engenhosidade e se senta nos bancos da atenção, uma aragem glacial força-o a abotoar o casaco e a enfiar as mãos nos bolsos. Tenta corrigir com um sorriso que gostaria de tornar insolente o seu porte lamentável: as muletas da coragem estão quebradas, já nada caminha, tudo dispõe dele próprio. Abre então um jornal mas, em vão o vira em todos os sentidos, tem de se reconhecer que o dia de ontem se apresentou como dos mais calmos. Não falando de uma praga de gafanhotos sobre o Atlas, o transtorno não foi grande. O boletim meteorológico continua mudo acerca de toda a mudança de tempo de um género novo, tal como a passagem brusca do vento do órgão nas conchas ou do jorro de mulheres azuis de certas nuvens.

Não se faz a recordação da vida sem nos apercebermos que nunca encontrámos estes grandes fantasmas com olhos de carbúnculo que passam pelos livros, nem frernimos por nos encontrarmos uma noite nos braços da bela desconhecida que não esperávamos. Os momentos de pânico real foram curtos. As borboletas, felizmente, não se precipitaram para nós em massa bastante compacta para nos fazerem cair. Se a hidra com cabeças de mulher se mantinha numa pose indiferente rios terraços dos cafés, temos de confessar que, em contrapartida, ao olhar todas as noites para baixo dos seus móveis, ainda não conseguimos trocar algumas palavras senão com homenzinhos de vaidade. Pôde-se ver ao escrever a própria cabeça através da caneta, ouvir o ruído do caminho de ferro sacudindo papoulas, tocar com o dedo a estrela da sua pedra tumular, nunca se conseguiu guardar na mão um punhado de água, mesmo que não fosse senão para degolar o seu sósia em gotas de água.

Ninguém se pôde ver nos espelhos com outro rosto que não fosse o seu, nem transparente, nem fulgurante. Tudo se tem sofrido: o céu e os seus carneiros, todas as formas da tempestade e do verto, as circunvoluções do Sol e o seu viveiro de pássaros, o braseiro das canções fora de moda, os assobios das cóleras contidas, o velame estendido dos canais sanguíneos, pavilhão desfraldado nas têmporas, a luz válida, o tabuleiro de damas do seu jogo, esquecimento dos sonhos e o calendário. Nem um segundo de tréguas, unicamente um segundo um pouco mais longo do que os outros, nem um logro de 1 de Abril de Inverno. Demoras, sim, digamos a palavra como não teríamos vergonha de a dizer nos campos de corrida, demoras na presença, na ausência, na expectativa.

Que responder àqueles que não nos pedem o impossível, àqueles a que nada espanta? De olhos baixos, transportamos o fardo do silêncio desde sempre e para sempre. Não o largaremos antes de o ouvirmos suplicar que o façamos.

As mãos são foguetes que não partem, mesmo nos dias mais belos. Toda a gente se reuniu cedo de mais, nada está pronto. Os pneus das viaturas são novos, já não chove. O homem e a mulher que se amam não se amam bastante para se assassinarem na primeira vez que se vêem. Como chamá-los à boa recordação desta capa de livro, desta cobertura gelada colorida: ele, de mão no coração, ajoelhado diante dela, na via enlouquecedora, a uma volta de rodas do rápido (o Sublime Pecado)? Como mostrar-lhes, na parede por detrás dó seu leito, aquela ave planando cujas asas são feitas com duas lâminas de foice, cuja cabeça é uma borboleta espetada prestes a morrer?

Tudo está anunciado, tudo está previsto, tudo está inscrito. Urna fortaleza de sons defende o canto do rouxinol, as ilusões estão à altura da varinha mágica, a beleza dos vestidos é feita com a beleza dos corpos, a noite anuncia a aurora. Mas, por uma noite perpétua, que o rouxinol se cale, a fortaleza é conquistada.

A retorta desguarnecida de homem ainda que imperceptivelmente dourada resiste ainda às intempéries, à altura do trigésimo andar a construir da Torre de Saint-Jacques. É sustentada por dois anjos siameses. Só se consegue avistá-la quando se está completamente só.

À sombra da torre toda a terra aceita ser lavrada, aceita os seus mortos. As charneiras do pão fecham as portas da fome, o bom tempo fecha as prisões. É sempre, é nunca. Os seres possíveis interrogam os seres prováveis, já sem pais nem mães. Esperam a sua vez, fazem círculo, renunciam à luva da visibilidade. O homem, ao centro, não é mais do que a vela.









andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



16 novembro 2009

gil t. sousa / quase esplendor






10/


cedo ao quase esplendor
das coisas brevemente eternas.

debruço-me sobre esse tempo estático
e atinjo a compreensão
da morte.







gil t. sousa
falso lugar
2004




13 novembro 2009

edward t. hall / a arte como história da percepção





(…)

A maior parte dos pintores sabe que operam a partir de diversos níveis de abstracção; a sua produção depende inteiramente da vista, não podendo dirigir-se directamente aos outros sentidos. Um quadro jamais pode dar directamente o sabor ou o perfume de um fruto, o contacto ou a textura de uma carne, ou a nota que na voz do bebé faz romper o leite da mãe. No entanto, a linguagem, tal como a pintura, dá destes factos representações simbólicas, por vezes tão convincentes que suscitam reacções próximas das provocadas pelos estímulos originais. O artista é muito hábil e, se o espectador possuir a mesma cultura que ele, poderá, pelo seu lado, suprir o que falta no quadro. O escritor e o pintor sabem que o seu papel consiste em fornecer ao leitor, ao auditor ou ao espectador sinais cuja escolha é ditada pela respectiva pertinência não só em relação aos acontecimentos descritos, mas, sobretudo, em relação à linguagem implícita e à cultura do público. A tarefa do artista consiste em suprimir os obstáculos que se interpõem entre os acontecimentos que descreve e o seu público. Deste modo, extrai do mundo natural elementos que, convenientemente organizados, podem tomar o lugar da totalidade e constituir uma afirmação cuja coesão e cuja potência não se encontram ao alcance do profano. Noutros termos, uma das funções maiores do artista é auxiliar o profano a estruturar o seu universo cultural.
A história da arte é quase três vezes mais longa que a da escrita, e a relação entre os dois tipos de expressão surge nas primeiras formas de escrita, como os hieróglifos egípcios. Porém, são raros os que vêem na arte um sistema de comunicação cuja história se encontra ligada à da linguagem. A arte seria considerada de maneira completamente diferente se tal fosse o ponto de vista adoptado. O homem está habituado a admitir a existência de línguas que não compreende à primeira vista e que necessita de aprender; mas, pelo facto da arte ser essencialmente visual, espera em geral poder captar imediatamente a sua mensagem, irritando-se quando assim não acontece.

(…)




edward t. hall
a dimensão oculta
tradução de miguel serras pereira
relógio d´água
1986


10 novembro 2009

vicente valero / teoría solar





XXIX




(epitáfio)


Só, mas não morto, quase morto diríamos,
mas ainda ofegante, com as mãos inúteis
e o rosto azul. Vencido, mas ansioso. O mar
pôs palavras velhas nas minhas orações. Onda,
madrepérola, medusa, alcantil… Fui
o afogado mais duro de roer. Debaixo de água,
digno, ia cantando os poemas de Shelley.
E quando as gaivotas queriam devorar-me,
dava-lhes pão limpo de sonhos incompletos.
O mar era um deus lento, não me merecia.







vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






08 novembro 2009

pedro mexia / rotina






Este é o meu número:
telefonem-me.
Este é o sítio
onde passo as tardes:
encontrem-me.
Ou não me telefonem
nem me encontrem
mas pensem em mim
enquanto estiverem a viver.








pedro mexia
eliot e outras observações
gótica
2003







03 novembro 2009

david mourão-ferreira / equinócio






Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe








david mourão-ferreira
do tempo ao coração
guimarães editores
1966



01 novembro 2009

àlex susanna / natureza morta








Livros repousam sobre a mesa,
óculos, um caderno, um lápis:
os instrumentos do escritor que consumiu
o seu tempo a ler, a pensar, a escrever
tentando estruturar algum breve poema
onde entrar, repousar, retirar-se talvez
na ponta final de um dia atribulado...


Muito antes, erigiam-se templos
e até mesmo grandes catedrais:
hoje, quando a noite chega, contentamo-nos
com um abrigo, uma qualquer arcada
onde evitar esse excesso de intempérie
e enganar o frio que nos corrói os ossos.







àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves





29 outubro 2009

joan-ives Casanova / pelos passos na areia…







pelos passos na areia molhada ao fim do dia poder-se-ia pensar
que estou aqui, presente, mas parti por entre brisas fugidias
e estou junto às asas do anjo no azul assustador do mar,
do céu e das sombras; e o peso triste da carne parece-se com o espelho
quebrado dos gestos e das horas, a imagem da presença dos corpos,
uma mão, uma pálpebra, o desenho da pele e a voz escutada do tempo;
o ar do dia dilui-me com frequência no fumo dos limites
e entre duas vagas algodoadas, se parece que sou real, vereis,
entrelaçar-se na tristeza o olho do desejo e o da morte,
e eu estou algures entre dois azuis gémeos que vêm apagar a noite.



seja como for o leve vento de neve voltará de certeza
êxito estranho do avesso dos dias; um anjo pousou
a mão na mesa, à beira-mar, e a cortina
dança entre o azul e o branco, encantamento do ar,
e seja como for as mãos nuas das horas alisadas
não dizem quase nada, levadas pelo anjo triste de cabelos
de ouro, e sopro de pássaros; pousada, a mão parece-se
com a sombra do mar porque ainda aí vivem homens, asas cortadas,
no côncavo da palma do deus grego, a gota de orvalho
que o caminho cego dos dias nos deixou para estancar a sede








joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga







28 outubro 2009

per aage brandt / livro da noite










*

(Silêncio).


- Estás tão ausente.
- Também tu estás ausente.
- Diz-me porquê.
- Diz-me também tu porquê.
- Isso entristece-me tanto.
- E como pensas que me sinto.
- O mesmo te pergunto eu.
- És tu que me tornas ausente.
- Mas eu estou aqui.
- Eu também, deixa lá!


(Silêncio).


*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004

26 outubro 2009

glória gervitz / migrações (fragmentos)







Sou a que sempre fui. O inesperado de estar a ser
Chego ao lugar do início onde o começo
começa
Este é o tempo
É o tempo de despertar
A avó acende as velas sabáticas desde a sua morte
e olha-me
Estende-se o Sábado até nunca, até depois,
até antes
A minha avó que morreu de sonhos
mexe interminavelmente o sonho que a inventa
que eu invento. Uma criança louca olha-me de dentro.
Estou intacta.






glória gervitz
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga

25 outubro 2009

vladimir holan / fica







Fica comigo, não me deixes,
a minha vida é tão vazia
que só tu, orgulhosamente humilde, me podes ajudar
a não perguntar mais nada.

Fica comigo, não me deixes,
tem pena da minha impaciência
que, rabiscada no diário de bordo de um navio-prisão,
perdurará até à eternidade.

Fica comigo, não me deixes
não conheces a raiva e nem a tua raiva durará para sempre –
e para onde irias, como te sentirias
quando estivesses farta? Espera um pouco, espera,
espera pelo menos até
que o carteiro chegue com as cartas que só a ti pertencem.






vladimir holan
mirroring: selected poems of vladimir holan
tradução de miguel gonçalves
wesleyan university press
1985






22 outubro 2009

rené char / alívio









“Eu vagueava no ouro do vento,
declinando o refúgio das aldeias
onde o meu coração fora violentamente despedaçado.

Da dispersa torrente da vida estagnada extraíra eu o leal significado de Irene.

A beleza desfraldava-se
do seu fantasioso invólucro,
dava rosas às fontes."


A neve surpreendeu-o.
Ele debruçou-se sobre o rosto aniquilado,
bebeu dele a superstição em longos tragos.
Depois afastou-se,
movido pela perseverança daquele marulho,
daquela lã.







rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000









21 outubro 2009

joaquim pessoa / balada das onze e meia







Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.

Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.

Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.

Às Onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.

Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.

Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.

Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.

Às onze e meia da noite
os Ódios nunca estão fartos.

Às onze e meia da noite
a morte anda lá por fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.

Onze e meia. Está na hora.

No relógio ainda é cedo.

Os ponteiros não deslizam.

Às onze horas e meia
esperamos por amanhã.
Chega a noite para a ceia
com dois pezinhos de lã.

Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.

Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.

Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.

Não passa. Nunca mais passa.
Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!

São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.

Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.

Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.

Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.

Bateram as onze e meia.

Só faltam trinta minutos.

Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.

São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.

Fincar no flanco uma espora.

Cavalgar por meia hora.

Dar rédeas ao coração.

Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.

E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como um padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.

Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
às onze e meia matou-se.

Em ponto. São onze e meia.

Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.

Bem comidos e bebidos
não tardam a adormecer.

E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.

Às onze e meia da noite.

Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo o que sabia
para subir de ordenado.

Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas as putas que são putas.
Não as que têm a fama.

São onze e meia da noite.

Já só falta meia hora.

Apenas trinta minutos.

Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.

Quero ouvir cantar o fado.

Quero dar uma facada
no galo da consciência.

Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.

E enquanto são onze e meia
ainda dura a pancada
no bar da rua das pretas
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidade
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.

Feitos aqui e agora.

Quando falta meia hora
para acabar o passado.









joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982

15 outubro 2009

frank o´ hara / a um passo de distância







É a minha hora de almoço, vou pois
passear por entre os táxis pintados
de ruído. Primeiro, pelo passeio
onde trabalhadores alimentam os troncos
sujos brilhantes com sanduíches
e Coca-Cola, usando capacetes
amarelos. Acho que os protegem
da queda de tijolos. Depois pela
avenida em que saias rodopiam
nos calcanhares e levantam voo sobre
os gradeamentos. O sol queima, mas
os táxis agitam o ar. Observo
pechinchas em relógios de pulso. Há
gatos que brincam na serradura.
Para
Times Square, onde o anúncio
sopra fumo sobre a minha cabeça e no alto
a cascata jorra suavemente. Um
Negro numa portada com um
palito, mexe-se langorosamente.
Uma corisca loura faz soar um estalido: ele
sorri e esfrega o queixo. De súbito
tudo buzina: são 12:40 de
uma Quinta-feira.
Neon de dia é um
grande prazer, como Edwin Denby
escreveria, como são as lâmpadas eléctricas de dia.
Paro para um cheeseburger no JULIET'S
CORNER, Guilietta Masina, mulher de
Federico Fellini, è bell' atrice.
E chocolate com malte. Uma senhora que
em tal dia usa pele de raposa mete o cão d'água
dentro de um táxi.
Há vários Porto
Riquenhos na avenida hoje, o que
a torna bela e quente. Primeiro morreu
Bunny, depois John Latouche,
depois Jackson Pollock. A terra
está tão cheia deles, como a vida esteve?
Comeu-se e passeia-se,
passa-se pelas revistas com nus
e os cartazes de TOURADA e
a Manhattan Storage Warehouse,
que em breve demolirão. Antigamente
pensava que nela se exibia o
Armony Show.
um copo de sumo de papaia
e volto para o trabalho. O meu coração está no
meu bolso, é Poemas de Pierre Réverdy.










frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço

trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995








13 outubro 2009

gil t. sousa / ser olhado assim





9/








pobres
dos que nenhuma vez olharam
ou foram olhados
assim.







gil t. sousa
falso lugar
2004








08 outubro 2009

yvette k. centeno / o rei




I


conta-me


conta-me entre as amêndoas


entre as mulheres
que é preciso
depor
aos pés
do rei


conta-me
torna-me
amarga


faz-me saber
mais
do que sei






yvette k. centeno
poesia do mundo
organiz. maria irene ramalho de sousa santos
edições afrontamento
1995




04 outubro 2009

fernando pinto do amaral / schubert, d.714











Demorámos um ano a aprender
alguns gestos de assombro e maravilha,
a voz da adolescência que desperta
silenciosa, depois do degelo,
e nos derrete a neve que envolvia
o próprio coração, agora aqui
à flor das nossas bocas.

Afogado na tua presença,
repito cada vez com menos estranheza
uma palavra: nós.
A sua vibração é um relâmpago
no crepúsculo da sala
e volto a encontrar a flor azul
que brota dos teus olhos, sempre em busca
de um sobressalto iluminado
quando dizemos: "toma, este é o meu corpo,
revelado por ti."

Sei hoje como é perder a inocência
e conservá-la ainda num recanto
desta sala de espelhos onde vive
a luz da tua imagem entre vozes
que celebram em coro o espírito das águas,
essa primeira esperança confiada
por Deus às nossas vidas.








fernando pinto do amaralàs cegas
relógio d´água
lisboa
1997






02 outubro 2009

al berto / lunário








(...)

Um dia, quando a minha memória de homem fugitivo
alcançar a idade de um deserto, debruçar-me-ei num poço e
tentarei beber o tempo esquecido do teu rosto. Estarei lucidamente
morto, eu sei, e os meus olhos já não prenderão a adolescência,
nem as imagens que dela se soltaram. E a minha cegueira surgirá
cercada por frondosas árvores e pássaros, mas não os verei mais.
O rosto, o teu rosto, já não conseguirá atrair-me para o fundo
circular do poço.

O tempo de sedução terminou. Terás de me tocar, terás de
trocar o tacto dos olhos pelo tacto dos dedos. Apenas persistirá o
jogo, a cumplicidade, e uma ténue vibração do corpo que se
perdeu contra o meu corpo.

Por isso me ergo daqui e atravesso estas imagens coladas às
paredes, e ao atravessá-las descubro que estou perdido, e
condenado também a perder-te.

Levanto-me do fundo de mim mesmo e abandono a casa, os
bens que herdei, e vou pela memória daqueles vestígios que se me
cravaram no interior das pálpebras, mas não semeio nem recolho
nada. Apenas persigo os passos que outrora abandonei pelas
cidades onde te procurei, antes mesmo de saber que existias.

E perco-me, perco-me onde a sombra dos corpos é um
sudário de melancolia sobre o mar. Mas, ainda aqui estou, quase
vivo, atento ao movimento perene de tuas mãos sobre o meu
corpo. E sem bússola, nómada até aos ossos, sigo pela noite onde
aportei, e não reconheço a casa que me destinaram para morrer.

(...)

As cidades seduziram-me com imagens de abismos
subterrâneos, vertigens de esperma que se vende, compra e troca. E sonhar
com essas cidades de medo e fascínio é ainda uma maneira de
saciar parte do desejo que me assola. Mas já só existo no que de
mim se cristalizou nas palavras, e é tão pouco...

De imobilidade em imobilidade a vida avançou, avançou
por ininteligíveis iluminações. Hoje, neste fim de século,
desloco-me sem saber como dentro das fotografias que revestem as paredes
deste quarto. E é-me indiferente estar aqui. Sempre que posso fujo,
fujo no olhar que cegou o meu. Porque eu fujo e vou com tudo
aquilo que me chama e toca. Vou com o azul dos olhos do
marçano ali da esquina, vou com as folhas das árvores no outono da
minha rua, vou com a noite à procura da manhã sobre o rio. Vou
pelos arranha-céus acima e contemplo dos altos terraços o sono
esbranquiçado dos mortos. Vou com o teu corpo que me desgasta a
memória doutros corpos e me transforma em esquecimento... vou,
vou sempre, pela humidade dos cardos presos em tua boca.

Abro depois as mãos, e não há mar nas suas linhas, nem
barcos que venham descansar na ponta dos dedos, e a linha do
coração - repara - é uma calosidade. E por uma noite da
imensa cegueira, quando já morar definitivamente em ti,
abandonar-te-ei... à hora dos répteis recolherem o calor nas fissuras do
tempo.

Intacto, irei à procura do merecido repouso.







al berto
lunário
assírio & alvim
1999




29 setembro 2009

henri michaux / mais um infeliz






Ele morava na rua de Saint Sulpice. Mas deixou a casa.
«Perto demais do Sena, disse ele, e um passo em falso dá-se num repente».
Foi-se embora.

Pouca gente pensa no facto de a água existir;
água profunda, e por toda a parte.
Os rios dos Alpes não são tão profundos,
mas são extremamente rápidos (o que vem dar ao mesmo).
A água é sempre a mais forte,
seja lá qual for a maneira como se apresente.
E como se encontra por todos lados, em quase todas as estradas...
bem pode haver pontes e mais pontes — basta faltar uma
e a pessoa afoga-se, tão certo como antes de haver pontes.

«Tome Hemostil, dizia o médico,
isso é do sangue.»
«Tome Antastene, dizia o médico,
isso é dos nervos.»
«Tome bals dizia o médico,
isso é da bexiga.»

Oh! a água,
toda essa água pelo mundo fora!








henri michaux
as minhas propriedades
trad. josé carlos gonzález
fenda
1998


27 setembro 2009

hans-ulrich treichel / verão








De súbito, na rua, está
outra vez um calor inconcebível,
o matraquear das sandálias de pau, as raparigas
abrem as blusas, não me atrevo
a sair da minha pele hirta
de suor e suspiro pelo Inverno,
que tem o seu lado bom, escuridão eterna,
humidade salgada, botas pesadas como pedras,
e o desejo das blusas abertas,
sandálias de pau e luz.








hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994





23 setembro 2009

andre breton e paul éluard / a força do hábito





A mesa está posta na sala de jantar; as torneiras distribuem água límpida, água tépida, água quente, água perfumada. O leito é tão grande para dois corno para um. Depois do rebento vai chegar a folha e depois da folha a flor e depois da chuva o bom tempo. Por que é chegada a hora, os olhos abrem-se, o corpo ergue-se, a mão estende-se, o fogo acende-se, o sorriso disputa às rugas da noite a sua curva sem malícia. E são os ponteiros do relógio que se abrem, que se erguem, que se estendem, que se acendem e que marcam a hora do sorriso. O raio de sol dá volta à casa em blusa branca. Ainda vai nevar, ainda vão cair algumas gotas de sangue pelas cinco horas mas não será nada. Oh! tenho medo, acreditei de repente que já não havia rua diante da janela, mas há, sim, lá está ela. O farmacêutico está quase a levantar a porta de ferro. Não tardará em haver mais gente à roda que no moinho, O trabalho talha-se, forja-se, desbasta-se, calcula-se. A mão volta a encontrar com prazer na ferramenta familiar a segurança do sono.

Assim isso dure!

O espelho é uma maravilhosa testemunha, variando sem cessar. Depõe com calma, com força, mas quando acabou de falar, nota-se que ele se corrige acerca de tudo. É a personificação corrente da verdade.

Sobre o caminho ricochete obstinadamente enlaçado às pernas da que volta a partir hoje tal como tornará a partir amanhã, sobre os jazigos ligeiros da despreocupação, mil passos em cada dia casam-se com os passos da véspera. Já se regressou, voltará a regressar-se sem se fazer rogado. Todos passaram por ali, indo da sua alegria à sua mágoa. É um pequeno refúgio com um imenso bico de gás. Põe-se um pé à frente de outro e aí vamos.

As paredes cobrem-se de quadros, as festas suavizam-se com ramos de flores, o espelho embacia-se de humidade. Quantos faróis sobre um regato e o regato está na vasa do rio. Dois olhos semelhantes, para servir o teu único rosto, — dois olhos cobertos pelas mesmas formigas. O verde está quase uniformemente distribuído pelas plantas, o vento segue as aves, não se corre o risco de ver morrer as pedras. O que se produz não é um animal domesticado, mas um animal domador. Ora! é a ordem imprescritível de uma cerimónia já tão faustosa, em suma! É o revólver de repetição que faz aparecer as flores no vaso, o hálito na boca.

O amor, com o tempo, renuncia tão bem a ver distintamente a noite.

Quando não estás lá, há o teu perfume que me procura. Não consigo fazer com que me restitua senão o oráculo da tua fraqueza. A minha mão na tua mão tão pouco se parecia com a tua mão na minha mão. A infelicidade, vês, a própria infelicidade ganha em ser conhecida. Tinha-te recebido como quinhão, não podes deixar de lá estar, és a prova de que existo. E tudo está de acordo com esta vida que para mim fiz para ter a certeza de ti.
— Em que pensas?
— Em nada.






andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972








21 setembro 2009

antonio gamoneda / o vigilante da neve







Fingia um rosto no ar (fome e marfim dos hospitais
andaluzes); na extremidade do silêncio, ele ouvia a
campainha dos agonizantes. Olhava-nos e nós sentía-
mos a nudez da existência. Velozmente, abria todas
as portas e derramava o vinho sobre o gelo de ama-
nhecer. Depois, a soluçar, mostrava-nos as garrafas
vazias.








antonio gamoneda
livro do frio
(2-o vigilante da neve)
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999







16 setembro 2009

luís quintais / cf






Nos teus lábios a noite
descreve um arco.
É o ciclo da melancolia
que se fecha.
Talvez não regresse.
Por outros sinais
lamentaremos a beleza
que, nos teus lábios,
a noite fez cessar.








luís quintais
lamento
anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
por jorge reis-sá
quasi
2001








14 setembro 2009

salvador dali / a conquista do irracional





(Extracto do texto inserto em Edições Surrealistas - 1935)


Em 1935, Dali consagrou a Picasso um poema que reunia todas as suas ideias e premonições sobre a experiência genial daquele que considera como o seu outro pai.




O fenómeno biológico
e dinástico
que constitui o cubismo
de
Picasso
foi
o primeiro grande canibalismo imaginativo
que ultrapassa as ambições experimentais
da física matemática
moderna.

A vida de Picasso
constituirá a base polémica
ainda incompreendida
segundo a qual
a psicologia física
abrirá de novo
uma brecha de carne viva
e de obscuridade
na filosofia.
Visto que por causa
do pensamento materialista
anárquico
e sistemático
de
Picasso
poderemos conhecer fisicamente
experimentalmente
e sem necessidade
as novidades «problemáticas» psicológicas
de sabor kantiano
dos «gestaltistas»
toda a miséria
dos
objectos de consciência
localizados e confortáveis
com os seus infames átomos
as sensações infinitas
e
diplomatas.

Porque o pensamento hipermaterialista
de Picasso
demonstra
que o canibalismo da raça
devora
«a espécie intelectual»
que o vinho regional
compromete
a berguilha familiar
das matemáticas fenornelogistas
do futuro
que existem «figuras estritas»
extrapsicológicas
intermediárias
entre
a gordura imaginativa
e
os idealismos monetários
entre
as aritméticas transfinitas
e as matemáticas sanguinárias
entre a entidade «estrutural»
de um «linguado obsidiante»
e a conduta dos seres vivos
em contacto com o «linguado obsidiante»
porque o linguado em questão
permanece
totalmente alheio
à compreensão
da
teoria gestaltista
já que
essa teoria da figura
estrita
e da estrutura
não possui
meios físicos
que permitam
a análise
nem mesmo
o registo
do comportamento humano
em comparação
com as estruturas
e as figuras
representando-se
objectivamente
como
fisicamente delirantes
pois
não existe
nos nossos dias
que eu saiba
uma física
da psico patologia
uma física da paranóia
o que não poderia ser considerado
senão
como
a base experimental
da próxima
filosofia
da
psico-patologia
da próxima
filosofia da actividade «crítico-paranóica»
a qual um dia
tentarei examinar polemicamente
se tiver tempo
e disposição.









salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965








13 setembro 2009

gil t. sousa / ainda que…





8/


ainda que nunca mais anoitecesse e no coração de um pensamento (de um pensamento súbito) cantasse um navio de areia

ainda que na corrente nada voltasse, nada soubesse voltar





gil t. sousa
falso lugar
2004




09 setembro 2009

josep maria llompart / amaram-se, souberam...






Amavam-se, sabei,
vicente aleixandre






Amaram-se; souberam
a urgência do sexo, como as veias
num momento se podem encher de água
salobra, de sol estival, de peixes
voadores.
Escondiam-se
na noite do pinhal ou pelos mornos
cantos de sombra.
Sentiam, fatigados,
o rumor da borrasca ou o longínquo
zumbir da cidade.
Ao acordar pela manhã ela acreditava
sentir no quarto um perfume de rosas,
e ele pensava o primeiro verso
de um poema que afinal nunca escreveu.
As bodas foram muito excitantes.
Têm um filho notário na península
e uma filha com noivo.
São gente a que chamam respeitável.

Regressam a casa ao fim da tarde, vagarosos,
saboreando, cansados, o crepúsculo.
Algumas vezes os olhos se lhes perdem,
com uma ponta de impaciência, entre os ramos
das árvores da rua, como se buscassem
um resto de vigor ou de carícia.
Olham os anos, o céu, as horas
secas,
o relógio e a poeira. Caminham. Calam.









josep maria llompart
(palma de mallorca, 1925)
quinze poetas catalães

trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994






08 setembro 2009

arsenii tarkovskii / o verão partiu








O Verão partiu
E nunca devia ter vindo.
Será quente o sol
Mas não pode ser só isto.








arsenii tarkovskii
8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987






04 setembro 2009

agustina bessa-luís / saúde






Direi como disse um médico famoso: «O ser humano que matava com uma lança os leões treme hoje com a picada duma mosca.» Isto quer dizer alguma coisa de angustiante, e nós sabemos que a angústia nos mantém em cativeiro. O modo de vida urbano propagou-se à província, o homem levou as suas doenças até ao sertão mais impenetrável, e uma série de maldições pesa sobre a nossa saúde tornada delicada. O sabor do vinho tornou-se venenoso, o sol já não tem o mesmo efeito abrasador e doce na nossa pele; pomos o pé com precaução no solo, desinfectamo-nos antes de dormir e ao acordar.






agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008





01 setembro 2009

josé gomes ferreira / a uma nuvem e a todas as nuvens (1939)






(Li este poema ao Manuel Mendes que
mo pediu para publicar na «Seara Nova».)









O sol abriu em asas
um charco de água podre
e uma nuvem surgiu
no silêncio da tarde.

Mas quem se atreve a ver no céu
um pântano a voar?
Quem procura no coração dos anjos
o sangue do lodo?
Quem tem a coragem de gritar aos deuses:
«Vi-os subir dia terra!»?

Ninguém, ninguém...

Todos te contemplam
como se caísses doutro céu mais longe
para chover nas bocas sequiosas
a esperança do pântano esquecido.
E bradar nos vales das montanhas
a cólera do pântano revoltado.
E molhar até aos ossos
a febre dos mendigos
que desprezam os charcos
mas imploram de joelhos,
num latim de lágrimas,
a tua água atravessada de céu.

Ó homens que chorais
perdidos nos desertos
a abrir sulcos de cobra e vento nas areias
com lágrimas de sede.

Prendei, prendei nos astros
os gritos dos relâmpagos
que não cabem nas bocas
dos homens de joelhos.

Olhai, olhai nas nuvens
as águias orgulhosas
a agonizar silêncio
em olhos de humildade.

Tremei, tremei de medo,
a rezar de mãos-postas
às vossas próprias lágrimas de angústia
com asas de tempestade.

Tapai, cegai o sol
Com mãos de névoa e súplica
para que o mistério do sonho
seja maior do que o homem.

E nas noites misteriosas
com esqueletos de frio
enforcados no luar,
lançai às estrelas
as almas transidas
para aquecê-las
em nuvens de cinzas...
… de rojo no chão sem reparar
que, na terra onde caís
a magoar os joelhos numa prece,
crepita uma chama
funda e sombria...
A sarça ardente das coisas vis
que tudo cria…
A pobre fogueira a arder na lama
que nos aquece...
Enquanto de joelhos,
com os olhos a voarem do corpo,
todos procuram no fumo
a explicação do fogo.

Todos, menos eu!

Eu que nas tardes viris do mundo
só olho para o céu
quando o azul é mais profundo
sem ilusões de nuvens.

E se tenho sede
debruço-me no lodo
para beber com orgulho
a água imunda dos lameiros
que andou pelas estrelas
mas voltou à terra
com o sabor a sangue
de todos os astros.








josé gomes ferreira
poeta militante 1º vol.
moraes editores
1977







28 agosto 2009

william carlos williams / a chaminé amarela








Há um penacho
de fumo cor
de carne pálida no azul

do céu. Círculos
de prata
enlaçam espaçadamente

a estrutura amarela de
tijolos e refulgem
nesta luz

ambarina - não
do sol não do
pálido sol mas

do seu irmão
legítimo
o outono







william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993







21 agosto 2009

carlos de oliveira / tempo variável







dança



I

Dançam na praia;
na orla onde se vai acumulando
uma primeira espuma;
de que surge a segunda;
que segrega, por sua vez,
o antídoto do mar;
usado sobre os rostos,
contra a acidez do sal, do lodo;
e esse trabalho atrasa mais
o movimento já difícil
de quem dança
desde o crepúsculo; talvez
possam chegar à madrugada;
mas não podem
refugiar-se noutra noite,
ao fim do túnel diurno:


II

as máscaras de espuma, fende-as a luz; e restitui
os rostos sem defesa
à erosão do mar;
alguns estudos sobre o vento
dizem que não regressará
tão cedo a esta praia;
incapaz de transpor a exalação
de fossas e algas; a muralha
que se prolonga, opaca,
às últimas camadas
onde é possível respirar;
e assim, faltando o vento, essência da leveza, cessa
a progressão aérea
que a dança subentende:


III

sente-se a lentidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;
dançam agora dois a dois,
reconstituem a unidade
cindida ainda há pouco; os pares
mortais; a vocação
de transformar o tempo em rostos;
somam-se duas mortes,
e obtém-se uma criança; ela, sim;
resistirá, crescendo,
ao desgaste do dia,
procurará na outra noite
o corpo que define o seu;
protege-a a espuma, a máscara,
até de madrugada; e então,


IV

das duas uma: reproduz-se
também; ou extingue em si
o fluxo da dança;
não é a conjunção dos astros
que comanda tudo;
mas a cor do céu; indecifrável;
e outros, um halo de metal,
quase cinzento, em que repousam;
ou donde se desprendem;
certas cores intermédias;
de qualquer modo, a noite
dificulta os tons, subverte-os
sem se dar por isso;


V

e o silêncio; a máquina
que mói uma energia turva,
a clarifica pouco a pouco
destilando o dia;
tritura nestas engrenagens
simples hipóteses de som;
até a memória recolher
o círculo do sol; no último
momento; quando se dissolvem,
quase simultaneamente,
dança e memória: sob a curva
acesa do regresso ao ponto
onde começa o seu desenho;
chama-se tempo a muita coisa;
mas a duração da praia
é a mais incompreensível.










carlos de oliveira
entre duas memórias
cadernos de poesia
publicações dom quixote
1971











19 agosto 2009

cesare pavese / desenraizados







Chega de mar. Já vimos mar que chegue.
Ao entardecer, quando deslavada a água se estende
e esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente
e eu fixo o meu amigo e nenhum de nós fala.
Chegada a noite, acabamos por nos fechar nos fundos duma taberna,
perdidos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem sonhos
(o bramir do mar torna os sonhos um tanto monótonos)
em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra,
que reflecte colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas.
Quando bebe, dá-lhe para isso. De olhos postos no copo,
vê-se a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar.
As colinas, a mim agradam-me; e deixo-o falar do mar
porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo.

Eu, o que vejo é só colinas, e enchem-me o céu e a terra
com as linhas nítidas dos seus perfis, distantes ou próximas.
Mas as minhas são agrestes, estriadas de vinhedos
que crescem penosamente num solo calcinado. O meu amigo aceita-as
e quer vesti-las de flores e frutos selvagens
para nelas descobrir, entre risos, raparigas mais nuas que os frutos.
Não é preciso: aos meus sonhos mais agrestes não falta um sorriso.
Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho,
poderemos encontrar nessas colinas, no meio das vinhas,
uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol,
e, talvez, metendo conversa, comer-lhe algumas uvas.






cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997







10 agosto 2009

gil t. sousa / o soar da última neve






7/


o soar
da última neve
aos pés
da rainha negra

retratos
são pedaços de abismo
ou restos
de chão firme

já não há mais nada
nem nos livros
nem nas horas
nem nas vozes

está tudo a arder
como se mais nenhuma paisagem
coubesse
na varanda dos meus olhos





gil t. sousa
falso lugar
2004





05 agosto 2009

herberto helder / e eu que sou louco…







e eu que sou louco, um pouco, não ao ponto de ser belo ou maravilhoso
ou assintáctico ou mágico, mas:
um pouco louco,
porque faço com mãos estilísticas um invento fora e dentro dos estados
naturais:e a faúlha e o ar à volta dela, jóia, digo, quero-a de repente,
e as matérias maduras e dramáticas: ouro, petróleo:
e com que potência madibular me debruço sobre o prato,
e ávido e inculto,
com mão aprendiz côlho o áspero alimento do mundo,
e rosto, membros, torso, radiações dos dedod,
trabalho no meu nome,
obra pequena de hemoglobina, enxôfre, células, osso, lume,
para estar mais perto de quem acaso me chame ou toque
---- eu,
sem beleza nem maravilha,
só dor,
desamor ou descuidada memória ----
mas mr conheça por isso que não é bem música,
talvez sim um som
dificílimo, sêco, acerbo, rouco, côncavo, precaríssimo
de apenas consoantes,
pregos








herberto helder
a faca não corta o fogo
ofício cantante
poesia completa
assírio & alvim
2009







04 agosto 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da demência precoce







A mulher que aqui está um braço sobre a sua cabeça pedregosa de amêndoas cobertas que saem daqui sem que se veja claro pois é pouco mais de meio-dia aqui ao sair do riso nos dentes que recuam através do palácio das Danaides que acaricio com a minha língua sem pensar que o dia de Deus chegou música na cabeça de rapariguinhas que choram trigo e se olham sem as verem chorar pela mão das graças na janela do quarto andar com reseda do gato que a folhagem ataca de flanco e de dia de festa. Ao fazer-me pão com o general das Termópilas lançado num triciclo e vermelho de ver. A selha é fecundada no céu pela Virgem imóvel na sua pipa. Deus faz-me línguas com o pão. Pesco montanhas. No pensamento do meu pensamento a grande casa com casas operárias na casa de pele humana com varanda de focas. O vulgar é supremo, embora haja tortura no leite de ovação e de evocação. Ele está ali com os seus olhos em teta, passo-o para os alvos de tiros. Disse três palavras a mais, tanto pior retiro-as, acrescento-as. Várias vezes mereci a morte, especialmente na Grécia por ter serrado a palmatória de um velho que perseguia os meus companheiros mesmo no meu leito de campanha. Desmascarei o maior criminoso da Caldeia. Para isso não tive de me servir da minha filha nativa das regiões baixas da visão de seu pai, todas as planícies a perder de vista que consomem canastras de madrepérola. Platina tu não te manténs de pé desde que o clarim da ausência sacudiu a tua eternidade. Pálido astro, pequena choupana no macaco de madeira que sufoco, tu cais das nuvens, tu retiras-te diante das quarenta maneiras de se servir da minha crueldade.
Quando era jovem, escondi Hércules na beira do meu fato de marinheiro, quando era velho restitui-lhe a liberdade ao fixar o seu resgate à minha pedra tumular em ricochetes. Ele ria por baixo da minha mordaça, um riso de hera. Mais tarde, como levasse avanço fiz germinar miríades de ovos de sapos provenientes de cruzamentos de caminhos com encruzilhadas de estrelas de cangurus no chapéu com gavetas de Napoleão da minha cómoda com pés de trevos sem folhas. Tenho como bisneta Cleo de Mérode, minha bisavó que viaja no dorso de lobo juntamente com Carlos, o Temerário. Ganhei um bilião de vezes a taluda à roleta jogando os nove meses do ano. Expulsaram-me em triunfo de todas as salas de esgrima porque queria apanhar o mel. Foi nesse dia que compreendi os sete mistérios da criação. Cleo de Mérode passava o seu tempo a querer calçar o pé da mesa com o mais claro dos meus rendimentos. Pus Cleo de Mérode na chancela do meu anel. Ela está tranquila, e desperta os mortos. Esterilizo todos os dados. O embrião mantém a sua aparência de chave inglesa, o ímpio já não se faz fanfarrão. Regulamentei a prisão por dívidas. É preciso mostrar carta branca para entrar e não subestimar os guardas. O tecto da prisão suporta as armaduras republicanas para os dias de gala. O reino dos inúteis terminou. Quiseram pôr-me uma barba falsa e fazer desempenhar o papel sepulcral de camareiro. Ameaçaram-me de me intrigarem com o rei de Agosto, mas eu rangi e disse-lhes quarenta e oito se não me largam a mão já não entrarei na caixa de moer para lhes fazer fogo.
Escrevi bem em bastardo na minha mala e fiz-mo registar pondo a cabeça de fora. Meteram-me no furgão dos leões, mas desde que me reconheceram já não tinham senão uma juba de margarida. Fiz puncionar mil leões durante o caminho no branco de muito que ficara livre. A seguir saltei do comboio que a si mesmo se atou. Tinha chegado.
Tirei o escalpe ao público. Pus a minha verdasca em todas as chaminés na noite de Natal.
Fui investido na confiança das pessoas ciumentas que me consultam para crimes passionais. Há razão para calafetar os sinos com as tranças das Francesas que não desbotam que já não têm senão o seu armário de espelho nas costas. Olho-me ali, ali me embalo e que se levanta? uma suspeita de piruetas desajeitadas nos joelhos de um velho senhor que satisfaz. Carreiras de lobas e cinzentos de chumbo, vi tudo. É preciso rir com os lobos.
Acredito na filatelia. Tenho as armas de Poitiers tatuadas no lado esquerdo do meu braço coberto por um xairel e as palavras pode-se prolongam artificialmente cada urna das pestanas da minha pálpebra superior enquanto que em cada uma das minhas faces se arredonda em rosa macabro a primeira letra de oui. A filatelia começou antes do homem, pelo início da época terciária. Os pterodáctilos saltam neste momento de uma margem para a outra do meu tinteiro. As imagens da boda não são obscenas: o padre devia trazer na sua casula um girino. As gomas enfoladas das serrilhas dos selos de correio cercam sempre com balões a nossa boa cidade. São precisos legumes frescos para os missionários, pois a antropofagia é contagiosa e dela só são suspeitos os selvagens. Um parricida em África arrancou um olho em forma de concha. As peças de jogo da carnificina são dez mil dedos ágeis.
Tenho um jazz no polegar alternando com um músico chinês que faz de unha. Estou enforcado num brinco de cerejas. Lancei todas as modas dos velhos tempos: a saia de esporas a arrasta-nascente, o globo com cruz na mão das crianças que chucham no polegar. Saboreei todas as iguanas que não se atreveram ainda a servir. Os dorminhocos não têm o mesmo cheiro das pessoas acordadas: se os despertam em sobressalto o cíclame espalha-se pelo quarto.
Tenho a mão de fathma nos Gémeos e um pé niquelado na Balança. A imensidade da minha natureza está compreendida entre duas picadas de vespas atreladas ao mesmo compasso que pede o biscato. Se é no lábio, existe beijo; se é nas nádegas, há Tibete.
Eu sou o avô, o pai, o sogro, o irmão, o cunhado, o tio, o genro, a nora, o primo, o padrinho e o cura do actual papa que não é mais do que um espião disfarçado, um amigo traidor ao serviço dos arquiduques de Tule. Não se poderá desmascará-lo senão mostrando à multidão a flecha do Parto cravada no seu ombro. Assim se unem os canalhas, os frutos adulterinos da criadagem e do colchão. Não temo senão ao ouvido a relojoaria dos Grandes Armazéns que construí amontoando 33000 raios de confeitaria sobre os tratados de paz. Um outro par de mangas sobre um outro par de ter razão sem estar lá, um outro par de mangas de outros braços sobre um outro par de mangas. Vai ter-se realmente em vista a manga do túnel sob a Mancha se os pinguins e os manetas são capazes de reconhecer o meu cérebro pelo grande Banhista do Bolo-Rei. É preciso servir-se do elevador para ir dos pés à cabeça pela imaginação mas, quando vejo as Repúblicas apresentarem-se à visita todas as semanas, lacro preciosamente o meu sangue depois de o ter posto em garrafas. O rapaz já não é tão sabedor acerca da sua sorte com as cadeiras nas quais se limita a sentar-se quilometricamente em relação a si mesmo sem marcar passo. Estou às cavalitas nos ombros de três raparigas que se dirigiam para ver melhor ao último andar da torre na qual me degolam enquanto desço o Niágara corno flutuador, em bola, em cana, em bola de som dos condenados que as jovens preferem e que libertam as jovens das armadilhas dos seus seios.
Nada darei às feras, matá-las-ei a golpes de adaga. Sou habitado de baixo para cima por urna matilha, o veado desce, põe-me no seu dorso de poltrona. O que vai escalar? O Sena desenrola-se, tenho a bobina, fio-a em fio de água por toda a parte. Tenho 21 000 vulcões em erupção. Faço fogo por todos os lados. Contudo desconfio dos 500 biliões de chamas que domo como cães. Estou em liberdade, o que me surpreende por parte da trovoada e da medicina dos simples. Escrevo aos notários a minha livre vontade em minha alma e consciência que jura perante o tribunal dizer toda a verdade ao insistir sobre as circunstâncias atenuantes e juro-o. Mas juro mandar o júri para os trabalhos forçados por me condenar a ser livre, laico e obrigatório. Não no mês de Julho mas no final e com carência em todos os duelos à lima e ao esquadro pelos meus superiores hierárquicos que se agarram as costelas em cada uma das minhas costelas. Nada fiz de mais que o mais e de menos que o mais e dei a liberdade a Deus que trazia urna gotilha de ouro que me entregou por estar livre e me conduzir pela mão nas pradarias com o botão de ouro.
Sob a palmatória dos corregedores que resmungam de viges os sumares de irdiana eu passo a tarde nos frascos sob o argério dos pimões. Salta por gluto. Constatei que o falecimento deseja trair numa gargalhada e submeter aos vivos a noite, esta seda rosa e branca do regresso da retardação das rasuras de ruptura. Riason ne hast gler. Comi à mesa de Fausto em crespins de machado e intimavam-se os convidados a passarem os olhos para azul para que o diabazulasse este passageiro azul que presidia com uma mão na minha mão, a outra nas suas rendas. E manchava-se até à medula. As brocas se rascacam umbeliferrantes com as ferraduras na manjedoura molhada e os fracosos engrenam os cadetesruivos. Eu quanto a mim eu abaixo-assinado eu me consequenco. Sentimentos com velas habituam-me ao apartamento para alugar com abrigo para o meu povo e o entendimento com cogumelos criqueta-me a erva preparando-se para a necessidade de arrancar a cabeça. E subir a um oleoto para tagarelar que ao Reno a Pátria reconhecida, ao Reno remorsos modernos e dos nossos Lorelei às apalpadelas ao baixar-se. Quando me ponho de capa dos pés a cabeça para ser a faia, o ante-nome, o contra-nome, o entre-nome e o Pártenon roga-me e eu digo não e canhão e disparo e o obus ricila e vai perder-se em mim e em mim e repercute em mim. Docemente a mirabonda e as fendas da galinha obstruem-se com darinça e arbila de Brioude no cotovelo o gafanhoto do cotovelo come o Inverno dos Heindes e dos Niobays de Soude. O frifro absorve-se pelo obo de eracmo. Bailarica-se nas pinças enquanto Aladino quiquiqui. Pedro é silogono em cachimbo de mucedro em ouro e em portanto, minhamuito e minhadernais. O andar de baixo é ocupado por Paris. O x exaspaltera o fogo de Seltz. Bataver e rolser em divisa de rabo de rato condecoram superviga o Onifonargelinglesa. Eu como para comoer de como é teu. Mas sim é da minha linhagem. Equivoqe jouh dir de ener o sistelo, as rubricas do teu saber se frisasasariam sem tardar. A açafanálise reduz as frubas de drona e posta doze quatro vezes oito. Maneira de aumentar o cieiro ceifar seis fica débito de exergo. Pego em onze e corto-os em onze fica onze que liassiprono de sam. Danret! Fina e funda que se climatoriza sem saber. Em beelza biribiada de léxicos negros que rondoce antes Que a Fronguarnição não Se adjective como Umdois que se adpalavra na língua e não na provisa, eu vos moeudo para mim que Marguesclin quem Dortapostrofa. E Quem heliotemposa os mercados das taças. Começamos por cada um nofoforo/lofoforo = Filho de Judas rondeva, que A Lineu pastor hipomito U vraili ouabi bencirog platol fernaca gla... lanço. U qualon purlo ouam gacirog olaiarna oual, u feaiva zuaïlo, gaci zulo Gaci zulo plef. U feaiva oradarfonsedarça nic olp figilê. U elaïaipí mouco drer hôdarca hualica-siptur. Oradar-gaçirog vraïlirn... u feaiva drer kurmaça ribag nic javli.








andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




27 julho 2009

fiama hasse pais brandão / estradas







1

Esta é a estrada
que me atravessa o tórax
com os seus marcos leves.
Vagarosa vida em terraplanagem,
vivo medo. Tem o cascalho,
o pó, o macadame negro
que nos esmaece. Vai cortar-nos
o som com que gritámos.
Abater a colina clara,
que percorríamos, amantes solitários.
Vai esquecer-se dos passos
de parentes e pássaros.
É a estrada que esventra.
Estivemos no começo
e no fim do seu tempo.







fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000




21 julho 2009

jean-arthur rimbaud / depois do dilúvio








Mal se aquietou a ideia de Dilúvio,

Uma lebre parou entre os sanfenos e
nas ondulantes campânulas e fez a sua
prece ao arco-íris através da teia da
aranha.

Oh! as pedras preciosas que se escon-
diam — as flores que já olhavam.

Na grande rua suja reapareceram as
tendas, e as barcas foram atiradas ao mar,
que era em degraus, e em cima, como
nas gravuras.

Correu o sangue, nas terras de Barba-
-Azul. Nos matadouros, nos circos, onde
o selo de Deus enlividecia as janelas.
O sangue e o leite correram.

Os castores construíram. Os mazagrãs
fumegaram nos estaminés.

Na grande casa vidrada ainda rumo-
rejante as crianças de luto olharam as
maravilhosas imagens.

Uma porta bateu — e no centro do
povoado o menino girou os braços arre-
batando os cata-ventos e os galos de todos
os campanários, sob o cintilante agua-
ceiro.

A Senhora *** instituiu um piano nos
Alpes. A missa e as primeiras comunhões
foram confiadas aos cem mil altares
da catedral.

As caravanas partiram. E o Esplêndido
Hotel foi construído sobre o caos de gelos
e de noite dos pólos.

Desde então, a Lua ouviu o uivo dos
chacais nos desertos de timo — e as églo-
gas sabias grunhindo ao vergel. Depois,
na mata violeta, sussurrante, Eucaris
disse-me que era primavera.

Irrompe, charco — Espuma, rola sobre
a ponte e por cima das árvores. Velos
negros e órgãos; raios e trovão — vinde
e rolai! — Águas e tristezas, crescei e
restabelecei os Dilúvios.

Pois, desde que eles se foram — oh as
pedras preciosas aluindo, e as flores aber-
tas! — é o tédio! e a Rainha, a Feiticeira
que acende o seu lume na frágua de barro,
nunca quererá contar-nos o que sabe e
nós ignoramos.








jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972